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    Janaina Conceição Paschoal: Será reserva de mercado?

    25/04/2014 03h00

    A igreja do papa Francisco, o pontífice do diálogo, trouxe como tema da Campanha da Fraternidade deste ano a erradicação do tráfico de seres humanos.

    Independentemente de qual seja a religião professada, ou mesmo de seguir qualquer religião, forçoso reconhecer a importância da proposta. O tráfico de seres humanos, seja para fins de trabalho escravo, seja visando à extração de órgãos para transplantes, ou para a exploração sexual, deve mesmo ser prevenido e reprimido, pois não se pode compactuar com a redução de uma pessoa à condição de coisa.

    Muitos são os seminários voltados à capacitação dos agentes públicos para o enfrentamento desse crime contra a humanidade.

    Recentemente, em São Paulo, ocorreu o Primeiro Encontro Mundial sobre Segurança Humana, que contou com um painel concernente ao tema. Durante tal evento, tive a oportunidade de externar um inconformismo, que divido com o leitor.

    Não consigo compreender por qual razão todos se preocupam tanto com as pessoas enviadas para o exterior, especialmente com aquelas traficadas para fins de exploração sexual, quando ninguém está muito incomodado com as que são comercializadas, à vista de todos, nas esquinas de nossas cidades.

    Estivéssemos a falar apenas de adultos, a incoerência já chamaria atenção; entretanto, autoridades convivem muito bem com o comércio sexual de adolescentes, não sendo raros, em nossos tribunais, casos em que exploradores e clientes findam exculpados porque, afinal, as jovens já estão iniciadas nas coisas do sexo.

    Quero aproveitar a Campanha da Fraternidade de 2014 para convidar os brasileiros a responderem para si próprios –como uma boa reflexão religiosa deve ser– se, ao nos ocuparmos das pessoas exportadas sem nos preocuparmos com as vendidas nas esquinas, não estamos, na verdade, cuidando de fazer reserva de mercado.

    Se o foco realmente é o ser humano, pouco importa se o comércio ocorre perto ou longe.

    Não há lógica em tomar os responsáveis pelo tráfico de seres humanos como criminosos e os comerciantes da desgraça alheia, que estão aqui, como empresários do sexo.

    Do mesmo modo, não é coerente olhar para a pessoa objeto de tráfico como vítima e para aquela que é agenciada, aos olhos de todos, como culpada pela própria situação, como merecedora dos maus tratos experimentados.

    É bem verdade que estamos em um país hipócrita, que se volta contra algumas ditaduras e se contenta com meias verdades. País que diz lutar contra o tráfico de pessoas e, ao mesmo tempo, importa escravos de Fidel. Mas, como a esperança é a última que morre, não custa tentar aproveitar o fato de o tráfico de pessoas ser o tema da moda para pedir que nos preocupemos também e, talvez principalmente, com os escravos que não deixaram nosso território.

    Muitos, ao lerem este texto, nele vislumbrarão um ranço de moralismo. Mas moralismo não tem nada a ver com moral. Moralismo é pretender ditar regras a pessoas livres.

    Já a moral e o Direito exigem que vulneráveis recebam respeito e proteção, independentemente de serem explorados em outro país, ou nos limites da cidade em que nasceram.

    JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL, 39, advogada, é professora livre-docente de direito penal na USP

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