• Opinião

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    Jirí Havlík: 1º de Maio de 2014

    02/05/2014 02h00

    O 1º de Maio é um feriado único. Em muitos países, ele é comemorado como o Dia do Trabalho. Da mesma maneira, nos países tchecos, esse feriado é festejado espontaneamente por milhares de pessoas que tiveram que lutar duramente por seus direitos humanos e civis.

    Infelizmente me lembro de tempos não tão longínquos, quando multidões marchavam fingindo um entusiasmo obrigatório, carregando cartazes patéticos, frequentemente mentirosos e agitando estandartes; isso tudo sob as ordens de ideologistas pagos pelas empresas e dirigidos pelo governo central do partido único. Aquelas pessoas marchavam com a preocupação de que suas ausências na manifestação resultassem em potenciais problemas no trabalho e na vida particular.

    Porém, completamente diferentes são as belas recordações que tenho dos estudantes, mesmo aqueles da velha guarda, que no 1º de Maio, em Praga, foram se beijar em meio ao pomar florido de Petrín e junto da estátua de Karel Hynek Mácha, o maior poeta romântico tcheco, celebrando a primavera política que despertava.

    Hoje, nas ruas das cidades tchecas marcham multidões menores. Mas aqueles que participam o fazem por sua própria vontade e convicção. Ainda assim, o 1º de Maio na Republica Tcheca atingiu um significado totalmente novo. Isso aconteceu há exatamente dez anos, quando nosso país entrou na União Européia (UE).

    Em 2004, a UE, sem dúvida o mais bem-sucedido e profundo bloco de integração no mundo, aceitou simultaneamente dez países como seus novos membros. Em toda história, esse foi seu maior alargamento. Pela primeira vez, verificou-se o envolvimento de vários países da Europa Central e Oriental. Para tais nações, que antes integravam a União Soviética, somente no 1º de Maio de 2004 chegaram ao fim as consequências da política internacional da 2ª Guerra Mundial.

    Mudou a República Tcheca nesses últimos dez anos? Muito. Na realidade, a mudança havia começado antes, quando o país se livrou da ditadura e teve que passar por uma transformação fundamental na sociedade e na economia. Não foi fácil e até hoje nem todos os cidadãos entenderam essas mudanças ou as aceitaram completamente. Mas a história tem mostrado que a sociedade se desenvolve mais lentamente que as coisas ao seu redor, no mundo da ciência moderna e da tecnologia de ponta. Por isso, a adesão à União Europeia amealhou seus apoiadores e opositores.

    Sempre pertenci ao primeiro grupo. De fato, há muito tempo um sábio disse: não fosse a absorção no bloco soviético, a Tchecoslováquia, com a sua tradição democrática, desenvolvimento econômico e cultural, teria sido um dos membros fundadores da integração europeia. Entrando para a UE, somente nos reinserimos no lugar que nos é devido. No entanto, falo apenas por mim e não vou procurar hipocritamente convencer parte de meus conterrâneos tchecos, aos quais a nossa ligação com a UE os aborrece.

    A República Tcheca tinha que, antes de sua entrada na UE, restabelecer o sistema do governo democrático. Talvez pareça óbvio, porém não era assim. Isso deveria ser realizado pelas mesmas pessoas que passaram 50 anos vivendo em uma ditadura.

    Os frutos são colhidos hoje. Nas escolas, a nova geração já não precisa aprender a mentir desde a infância. Eles podem obter qualquer informação sobre o mundo que os rodeia; podem viajar livremente e estudar onde desejam, conhecer outras culturas e opiniões. Talvez soe como um clichê, mas notadamente é a geração jovem, eu diria, a que melhor absorve e compreende a nossa integração na UE, e, em função disso, procurara modos de usá-la em favor de seu país.

    Muitas mudanças surpreendentes foram alcançadas e novos horizontes estarão se abrindo. Um exemplo é a cooperação entre praticamente todas as regiões de fronteira de nosso país e seus respectivos vizinhos: Estados alemães da Baviera e da Saxônia, Polônia, Eslováquia, e Estados da Áustria. Há também o desenvolvimento de relações científicas diretas e intercâmbios de estudantes entre as universidades de todos os países da UE. São centenas de exemplos positivos e a lista continua crescendo.

    A extensão do bloco para o leste da Alemanha e da Áustria resultou em uma transformação extrema para a própria União Europeia, incluindo os seus membros mais antigos. E não apenas acerca dos benefícios econômicos mútuos, os quais são consideráveis e altamente significativos.

    Ela mudou o próprio modo de pensar dos países da Europa Ocidental. Alterou a percepção desses países e promoveu uma marcha de aproximação entre Europa Central e Oriental, o que alguns anos atrás teria sido inimaginável. Um excelente exemplo disso é o impacto positivo da UE na estabilização gradual das relações historicamente complexas dos países da região do Bálcãs, ou, mais recentemente, a unidade da UE sobre a crise na Crimeia. O bloco não teve capacidade de resolver o problema na Ucrânia, mas com a sua atividade e força política contribuiu para o amortecimento dos outros potenciais cenários de desenvolvimento da crise.

    Talvez seja verdade que o 1º de Maio de 2004 não foi o dia da reunificação da Europa, como algumas pessoas exageradamente avaliaram. Mas foi, definitivamente, o dia da demolição de uma barreira artificial que dividia ao meio o continente.

    JIRÍ HAVLÍK, 61, é embaixador da República Tcheca no Brasil

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