• Opinião

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    Rubens Naves: Bolsa Creche, um truque inconstitucional

    07/05/2014 02h00

    Em campanha, Fernando Haddad se comprometeu a abrir 150 mil novas vagas em creches e pré-escola até 2016. Na época, final de 2012, havia 93,8 mil crianças na fila de espera por uma vaga no município de São Paulo. Em dezembro de 2013, encerrando o primeiro ano de governo do atual prefeito, a fila havia aumentado e reunia 96,6 mil crianças.

    Numa sociedade em que os adultos precisam passar o dia fora de casa trabalhando, a creche é um direito básico da criança. Sem ela, restam escolhas dramáticas: abandono do trabalho e incapacidade de sustentar a família ou exposição diária a riscos.

    Crianças deixadas sozinhas em casa ou sob a vigilância precária de cuidadores despreparados ficam sujeitas a acidentes domésticos, abusos e violência. Mesmo as que têm a sorte de não sofrer esses traumas já começam seus processos de socialização e aprendizado em desvantagem. Neurocientistas, psicólogos e educadores são unânimes em apontar a influência fundamental, para o desenvolvimento humano, dos ambientes, estímulos e cuidados na primeira infância.

    Desde a promulgação da Constituição de 1988, o acesso gratuito à creche (de 0 a 3 anos de idade) e à pré-escola (de 4 a 5 anos) é garantido a todas as crianças do Brasil. O fato de que esse direito tem sido sistematicamente negligenciado, por seguidas administrações, na cidade mais rica do país, é uma vergonha que não podemos aceitar.

    Diante disso, um conjunto de entidades –incluindo a ONG Ação Educativa, a Rede Nossa São Paulo, a Defensoria Pública, o Ministério Público do Estado e advogados solidários– articulou uma frente de luta em defesa do direito à creche. Em 2013, o trabalho desse grupo resultou numa decisão em sede de ação civil pública que tramitou no Tribunal de Justiça do Estado. Depois de meses de negociações pouco frutíferas com a prefeitura, em dezembro o tribunal divulgou seu acórdão: a administração municipal deveria abrir 150 mil novas vagas –105 mil em creches e 45 mil para pré-escola– até o fim de 2016. Nada mais, nada menos que a promessa que ajudou o atual prefeito a se eleger.

    Em vez de assumir o compromisso e se mobilizar para cumprir o acórdão, entretanto, a prefeitura tem lançado mão de recursos judiciais protelatórios, numa clara tentativa de, em bom português, empurrar o dever com a barriga.

    Paralelamente, desde o final de 2013 vem tramitando na Câmara Municipal uma proposta do vereador Jair Tatto, do PT (mesmo partido do prefeito), que prevê o pagamento de uma "bolsa" às famílias desassistidas em seu direito à creche. Aprovado numa primeira apresentação ao plenário da Câmara, o projeto do "Bolsa Creche", deverá, em breve, passar pela segunda e definitiva votação e, se ratificado pela maioria dos vereadores, precisará apenas da sanção do prefeito para entrar em vigor.

    O projeto ofende dispositivos da Constituição Federal, da Constituição do Estado de São Paulo e da Lei Orgânica do Município, na medida em que transfere para as famílias uma obrigação do poder público. E o valor previsto, cerca de meio salário mínimo mensal por criança desassistida, é insuficiente para o pagamento de uma creche de qualidade em período integral.

    Se o projeto for aprovado pela e chancelado pelo prefeito, em vez de mobilizar todos os recursos disponíveis para efetivar um direito social prioritário no menor prazo possível, a municipalidade optará por um mero truque político.

    Compreende-se que, para famílias desesperadas em razão de omissões do poder público, qualquer pequena ajuda seja vista como melhoria. Mas que os vereadores e o prefeito não se iludam: um quebra-galho inconstitucional não substituirá seu dever de cumprir a lei e cuidar das nossas crianças.

    Na quarta-feira, 7, a Comissão de Administração Pública da Câmara realiza, a partir das 13h30, uma audiência pública para discutir o projeto do Bolsa Creche. É uma excelente oportunidade para que, ouvindo educadores, defensores públicos, promotores de justiça e outros defensores do direito à creche, os vereadores de São Paulo assumam seu papel na luta pela efetiva solução do problema.

    RUBENS NAVES, 72, advogado, é conselheiro e ex-presidente da Fundação Abrinq/Save the Children, membro do Grupo de Trabalho Interinstitucional pela Educação Infantil e coautor do livro "Direito ao Futuro - Desafios para a Efetivação dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes" (Imprensa Oficial, 2010)

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