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    Betty Milan: A Copa é a Copa

    30/05/2014 02h00

    Em 1970, a palavra de ordem da oposição à ditadura era que se torcesse contra a seleção brasileira. Foi cumprida? Não, claro. Foi por terra ao primeiro ataque bem-sucedido. A cada gol dos canarinhos, era um festa e, no dia do tricampeonato, o país inteiro se entregou à folia.

    Isso se explica pelo fato de o Braaasilll!, o país da bola, não poder ser confundido com o país oficial. Sumariamente, no seu espaço, a vitória é função do talento, e ela implica o respeito à lei, enquanto, no país oficial, há espaço de sobra para toda sorte de desmando.

    Toda tentativa de sabotar o Braaasilll! para combater o país oficial é contrária à nossa imagem e aos valores que podem transformar o Brasil num país desenvolvido. No jogo, as regras são as mesmas para todos e o jeitinho não existe; a competência é um requisito básico, mas exige que se leve em conta o outro; o indivíduo é tão importante quanto o grupo, a individualidade aí se realiza sem que o individualismo possa prevalecer.

    O jogo tem uma grande função educativa: ensina a respeitar a regra e dar noção de limite, indispensável à cidadania. Trata-se de um recurso poderoso na formação das crianças, pois no seu contexto a lei vigora e quem faz pouco dela é sempre punido. O jogo indiretamente ensina a dizer não e a aceitar a negativa.

    As manifestações contrárias à Copa são contrárias às crianças e é bom lembrar que as despesas com a mesma são maiores do que o previsto originalmente, mas esse custo equivale a um mês de gastos com a educação no Brasil. Bastaria esse dado para ser mais do que favorável à Copa.

    Além de fundamental para a formação da personalidade, o jogo também existe para suspender a beligerância –as manifestações atentam contra o próprio espírito da civilização. Em Olímpia, onde nasceram os jogos Olímpicos, todas as hostilidades, inclusive guerras em curso, eram suspensas. O ato que violasse a trégua era considerado criminoso e devidamente punido.

    Podemos ser contrários ao que aí está, mas enfrentar o "status quo" opondo-se à Copa, além de inútil, é um ato masoquista. Como diz Platini, é tão importante para os torcedores virem à Copa no Brasil quanto para os muçulmanos irem a Meca. Romper a trégua com manifestações políticas é uma forma de barbárie.

    A hora é de deixar a nossa grande cultura popular acontecer como pode, valendo-se da improvisação para a qual somos treinados, difundindo a alegria de que somos capazes e de que o resto do mundo precisa.

    De 1995 para cá, o futebol mudou. Depende menos do jogador do que do técnico e do time. Mas, apesar da globalização, o estilo brasileiro continua a se manifestar. As jogadas de Neymar e as pedaladas de Robinho são a prova disso. Não brincam como Garrincha, porém, como este, se valem do jogo para se divertir e levar o público ao delírio da alegria.

    Evocando a tradição ocidental da trégua sagrada, devemos proteger o campeonato do mundo e torcer por um jogo limpo como o de Pelé. Exercitava-se para mostrar que mais vale um bom drible do que um chute na canela. Quando jogou pelo Santos contra uma equipe francesa no Parc des Princes, foi atacado por um beque que o chutou indiscriminadamente. Partiu para a luta, aplicando uma série desmoralizante de dribles. Fez valer a Moral do Jogo, que exige o jogo para ganhar. Lembrou que, além de vivermos num país onde penamos por causa da injustiça social e da insegurança, somos súditos de uma monarquia da qual ele é o rei.

    BETTY MILAN, 69, é escritora e psicanalista, autora de "O País da Bola", entre outros

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