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    Paulo Brossard: Manifestações

    04/06/2014 02h00

    Outro dia, velho amigo chamava minha atenção para o número de manifestações que se sucedem dia a dia e, mais do que isso, para a pretensão de impor caráter compulsório às suas conclusões e, como não encontrasse sua razão de ser, questionou-me a respeito.

    Recordei, então, os fatos decorridos nos mais de 20 anos do período de chumbo, em que o domínio dos acontecimentos estava sujeito à censura mais severa e, como tal, não podia haver "manifestações".

    Suponho não errar se disser que a revogação do AI-5 contribuiu para o alívio da situação e consequente gestação de novas expressões sociais, até chegarem às atuais. Exemplo inexcedível foi o ocorrido agora nas imediações do Palácio do Planalto; aborígenes e ditos sem teto, reagindo a medidas policiais que objetivavam a incolumidade da sede do governo, terminaram em áspero bate-barba.

    E, como uma ideia puxa a outra, ocorre-me que, em tempo não remoto, ninguém imaginaria que um grupo de universitários, setor privilegiado da sociedade, invadisse reitoria de universidade e a ocupasse, enquanto as autoridades legalmente investidas da posse dos mencionados bens, para o funcionamento dos inerentes serviços públicos, deles se vissem despojados.

    A essa situação se somam outras que, próxima ou remotamente, se interligam a manifestações, que não se confundem com as passeatas tradicionais, cuja marcha pelas ruas se autodissolvia com um ou dois discursos, sem conflitos coletivos nem lesões a bens públicos ou privados.

    Não me parece arbitrário estabelecer relação, aliás concomitante, entre o arbítrio estabelecido e a passividade social. De resto, o período foi suficientemente largo para que deixasse marcas da sua passagem.

    Há quem estranhe que, durante lapso tão extenso, não tenha havido reação da sociedade; esse é um dado que só pode ser lamentável, mas é real. Seja porque a asfixiante dominação que se processara era tão intensa que gerou um quadro de torpor, conformismo, indolência, indiferença, descrença, ceticismo ou que outra denominação se encontre, seja por outros fatores. O que importa, porém, é que existiu o fato, em sua expressão material, mercê de causas imateriais ou não. O incontestável é que a sociedade foi testemunha acabrunhada.

    Não estranha que, depois de uma demorada fase de vil tristeza, a desordem mental subsequente fosse propícia ao aparecimento de reações permeadas de irracionalidade um tanto febril, que deram margem ao fenômeno das "manifestações", sucesso como tantos mais difícil de descrever do que de definir.

    Enfim, depois de tantas palavras, não logrei passar da epiderme do acontecimento, ficando as "manifestações" pagãs, embora de crescente exuberância. De qualquer sorte, o fato de elas terem ocupado o centro das preocupações significa inovação, comparada com experiências passadas. Esquecia-me de dizer que o período de dominação autoritária na vida social teve quinhão acentuado na delimitação do quadro consequente. Em síntese, imperioso ressaltar que a inovação não foi das mais felizes.

    PAULO BROSSARD, 89, foi ministro da Justiça (governo José Sarney) e do Supremo Tribunal Federal (1989-1994)

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