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    Luiz Gonzaga Vaz Coelho: Trinta anos sem úlceras no estômago

    16/06/2014 02h00

    Em 16 de junho de 1984, há exatos 30 anos, vinha a público a pesquisa de dois médicos australianos, Barry Marshall e Robin Warren, revelando que o estômago humano era colonizado por uma bactéria.

    Os pesquisadores descobriram que a Helicobacter pylori tinha uma relação causal direta com as gastrites, as úlceras do estômago e do duodeno e até mesmo com o câncer do estômago. Como consequência, os autores foram agraciados com o Prêmio Nobel em Medicina em 2005.

    A demonstração de que uma bactéria era capaz de sobreviver no meio ácido do estômago representou a destruição de um dogma. Até então, os estudos se concentravam no papel lesivo do ácido clorídrico.

    A comprovação de que as úlceras de estômago e duodeno –que acometiam até 10% da população mundial no século passado– poderiam ser curadas com antibióticos levou anos para ser aceita. Antes, duas premissas orientavam médicos: "sem ácido, não há úlcera" e "uma vez ulceroso, sempre ulceroso". A cirurgia no estômago, que constituía uma das terapias mais empregadas, tornou-se raridade médica.

    Helicobacter pylori é hoje ainda responsável por mais de 90% das úlceras de estômago e duodeno no Brasil. Sua eliminação por meio do tratamento com antibióticos e a progressiva redução de sua incidência na população mundial (inclusive, de forma ainda lenta, no Brasil) tem tornado a úlcera de estômago associada à sua presença uma doença a caminho da extinção. Milhões de pessoas que sofreram durante décadas de dores lancinantes no estômago, vômitos e hemorragias estão definitivamente curadas.

    Persistem, entretanto, e infelizmente em escala ascendente, as úlceras provocadas por medicamentos, notadamente os anti-inflamatórios e os derivados do ácido acetilsalicílico, que não guardam relação com a bactéria.

    Consolidada a revolução "copérnica" representada pela cura definitiva das úlceras, uma segunda especulação emanada do trabalho de Marshall & Warren vem se tornando realidade, qual seja, o seu papel no câncer de estômago.

    Estudos mostram hoje que 80% ou mais dos tumores malignos do estômago não existiriam sem a bactéria –ainda que a eclosão do câncer dependa também da presença de cofatores como fumo e erros dietéticos, além da predisposição genética do indivíduo.

    O câncer do estômago é responsável por 700 mil mortes no mundo por ano e, no Brasil, é o terceiro tumor maligno mais frequente nos homens e o quinto nas mulheres.

    Presente no estômago de mais da metade da população mundial, a bactéria é mais prevalente nas regiões mais pobres e tende a diminuir com a melhoria das condições de saneamento. Seu combate envolve situações de saúde pública complexas e de custo elevado. O desenvolvimento de uma vacina anti-H. pylori, eficaz e de baixo custo, representaria a solução ideal. Infelizmente, os estudos para seu desenvolvimento não apresentaram resultados animadores até o momento.

    Diante desse dilema, em decisão inédita no mundo, o Japão, onde o câncer de estômago mata mais de 50 mil pessoas/ano, decidiu em 2013 tratar com antibióticos toda a população infectada pelo H. pylori, estimada em 50 milhões de pessoas.

    No Brasil, onde o câncer de estômago mata mais de 13 mil pessoas por ano e a infecção por H. pylori acomete mais de 100 milhões de habitantes, tal medida não é considerada –as análises de custo/benefício não a justificam.

    O tratamento no país é reservado para pessoas que apresentam sintomas como úlceras e gastrites e pessoas que têm risco aumentado de desenvolver câncer. Enquanto se enfrenta o desafio de promover o tratamento nesses indivíduos, aguardam-se avanços nas medidas de saúde pública e saneamento.

    LUIZ GONZAGA VAZ COELHO, 66, é professor titular da Faculdade de Medicina e chefe do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Presidente do Núcleo Brasileiro para Estudo do Helicobacter pylori

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