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    Paulo Sérgio Pinheiro: Estratégias da ilusão

    29/06/2014 02h00

    No quarto ano do conflito armado, milhões de sírios ainda sofrem com a perda de familiares em bombardeios aéreos, com a violência em centros de detenção, com desaparecimentos e fome. Mais de 150 mil pessoas perderam a vida.

    A incapacidade de proteger os civis dos bombardeios das forças governamentais sírias e dos ataques dos grupos não estatais armados levou a um sofrimento indizível.

    Estima-se que 9,3 milhões de sírios têm necessidade de assistência humanitária urgente, com 4,25 milhões de deslocados internamente e 2,8 milhões de refugiados em países vizinhos. A expressiva maioria são mulheres e crianças.

    A infraestrutura básica do país foi destroçada. Escolas foram reduzidas a escombros ou ocupadas pelas forças armadas. Hospitais foram invadidos. Bairros residenciais estão destruídos. Alimentos, água e eletricidade foram cortados para infligir sofrimento a populações civis. A guerra teve um impacto devastador sobre a economia do país.

    Como meu colega Lakhdar Brahimi afirmou antes de renunciar a suas funções de enviado conjunto da ONU e da Liga Árabe, a Síria está a ponto de se tornar um "Estado falido, com senhores da guerra por toda parte", e o conflito não ficará restrito às fronteiras do país.

    A guerra na Síria atingiu um ponto de inflexão que ameaça toda a região. O governo sírio e os grupos armados na oposição têm levado a violência ao paroxismo. Todos desrespeitam flagrantemente as regras dos direitos humanos. Uma impunidade generalizada campeia.

    Combatentes e cidadãos são torturados até a morte dentro de centros de detenção, homens são decapitados e alguns crucificados em praça pública, mulheres vivem com o estigma do abuso sexual e as crianças são recrutadas pelas forças de combate.

    Escolhas cotidianas como ir ou não à mesquita para as orações, ir ou não ao mercado para fazer compras de comida ou levar ou não as crianças à escola para que deem continuidade a seus estudos se tornaram decisões de vida ou morte.

    Como as partes em conflito chafurdam na ilusão de que a vitória militar está a seu alcance, Estados com influência no conflito renunciaram a trilhar a via para uma solução política. Alguns continuam a fornecer armas, artilharia e aviação para o governo ou contribuem com assistência logística e estratégica. Outros países e indivíduos apoiam os grupos armados não estatais com doações financeiras, armas e treinamento.
    Alimentam, assim, uma guerra por delegação, uma "proxy war" de potências dentro da Síria.

    A ameaça de uma guerra regional no Oriente Médio está cada vez mais próxima. O conflito armado que se alastra no Iraque terá repercussão devastadora na Síria e em outros países limítrofes.

    O aspecto mais alarmante tem sido o aumento da ameaça sectária, consequência direta da dominação de grupos extremistas como o Estado Islâmico no Iraque e no Levante, o EIIL. Seus combatentes radicais atacam não somente as comunidades sunitas que não se submetem a seu controle, mas também minorias como os xiitas, alauítas, cristãos, armênios, drusos e curdos, todos considerados apóstatas ou infiéis que devem ser abatidos.

    Diante das ilusões desse triunfalismo belicoso generalizado por todas as partes, deve-se continuar a insistir que não há solução militar para o conflito. Desde o início, a única via sempre foi e continua sendo uma negociação diplomática, política, que inclua todos os países com influência na região, desde o Irã até a Arábia Saudita.

    Os povos da Síria têm o direito de exigir da comunidade internacional, pelas oportunidades perdidas de terminar o conflito e pelo sofrimento a eles imposto, que a paz não continue a lhes ser negada

    PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 70, é presidente da comissão independente internacional de investigação da Organização das Nações Unidas sobre a República Árabe da Síria. Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso

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