• Opinião

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    Aldo Pereira: Ero$

    01/07/2014 02h00

    À beira da calçada, a moça equilibra em dois estiletes o corpo que, espremido pela roupa, parece transbordar do decote. Enquanto rumina o chiclete um tanto nervosa, ela perscruta carros passantes na contida expectativa do efeito desse anúncio de si mesma.

    Prostituição tem sido a mais explícita e primária exploração comercial de atrativos sexuais. Mas quanto o capital erótico não tem rendido também na sutileza do flerte, no charme sugestivo de intenções ambíguas? Em convívio unissex, cada mulher avalia, subconscientemente, mensagens tácitas que ela emite e inspira em cada passo, gesto, expressão fisionômica ou tom de voz.

    (Exemplos se multiplicam e se complicam no universo das ambiguidades homo e bissexuais. Mas o tema de hoje propõe reflexão mais restrita: valor econômico da atração que a mulher exerce sobre o homem.)

    No retorno da guerra de Troia, Odisseus teve de costear certa ilha aonde o canto sedutor de duas sereias, cada uma delas meio mulher, meio pássaro (não peixe), atraía navegantes para despedaçar seus navios em rochedos do arredor. Odisseus ordenou que, na travessia, os tripulantes o amarrassem ao mastro e mantivessem os próprios ouvidos tapados com cera enquanto remassem. O estratagema lhe permitiria gabar-se, depois, de ter sido o único homem sobrevivente ao canto das sereias.

    Essa narrativa, talvez até mais antiga que a própria "Odisseia", pode ter originado associações do canto à sedução (etimologicamente, "desvio") em palavras como encantamento, charme (do latim, "carmen", canção) ou cantar (no sentido de interessar ou persuadir alguém ao romance). O mito das sereias ludibriadas pelo herói explora o arquétipo da "mulher fatal" (o adjetivo alude a fado, no sentido de destino), contra a qual o homem recorre a artimanhas como a de Odisseus. Compare com a burrice de Sansão e a ingenuidade de Fausto.

    Em muitos casos, é verdade, os papeis se invertem. Mas a biologia determina diferenças imperativas. O espermatozoide nada, o óvulo deriva sem motilidade no fluido tubário. O homem pode engravidar a mulher sem consentimento dela, mas ela depende de elicitações para induzi-lo a fecundá-la.

    Embora nem sempre compensadores, os meios dela demandam hoje investimentos onerosos: adornos, cirurgia plástica, decoração cosmética do rosto, dieta, malhação, moda, ortodontia, perfumes. Não que necessariamente ela aceite comprometer sua respeitabilidade com lucro impróprio. Muita mulher, se não a maioria, se resigna a tais gastos de tempo e dinheiro mesmo que, namorada ou esposa, concentre num único homem o interesse aparentemente difuso.

    Para quê, então? Bem, onde há concorrência, há propaganda e vice-versa. Para procedente consternação das feministas, valor econômico é corolário do complicado teorema do amor. Investimento de capital erótico na aparência tem rendido lucros legítimos de fama e fortuna, por exemplo, a modelos e atrizes. Mas pense noutros dividendos, como privilégios e promoções imerecidas na hierarquia corporativa. Registre no balanço manteúdas de políticos, de empresários e de celebridades midiáticas.

    Personalidade também seduz, mas a expressão de atributo assim abstrato requer contexto, não cabe na imagem fugaz ou exígua. Daí predominar nos anúncios comerciais dirigidos à mulher a valorização erótica, explícita ou sutil, de formas e movimentos do corpo, tons da fala, gestos, expressões da fisionomia.

    É mau? É bom? Pretensa autoridade em questões de elegância e filosofia, o francês encolhe os ombros: "C'est la vie".

    ALDO PEREIRA, 81, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha
    aldopereira.argumento@uol.com.br

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