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    Marcelo Neri: Desigualdade, a foto e o filme

    07/07/2014 02h00

    Observadores como o colunista Clóvis Rossi colocam em xeque a queda da desigualdade de renda brasileira, misturando o nível com a sua variação ao longo do tempo, o que equivale a confundir a foto com o filme.

    Senão, vejamos: a nossa desigualdade de renda é ainda elevada, o 18º Gini mais alto em 155 países. Porém, está em queda desde 2001 pela Pnad, confirmada por outras pesquisas domiciliares como POF, PME e Censo. A alta qualidade da Pnad é atestada pela Wider da ONU.

    Thomas Piketty revela níveis de desigualdade de renda pelo Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) mais altos que os calculados a partir de pesquisas domiciliares. Por exemplo, a desigualdade brasileira pelas pesquisas domiciliares é 13% mais alta que a norte-americana, mas igual à medida pelo IRPF deles. Porém, meus cálculos sobre os dados internacionais de pesquisas domiciliares e os do IRPF, reunidos por Tony Atkinson, o pai das modernas medidas de desigualdade, revelam, sem exceção, movimentos comuns entre elas com correlação de 0,89.

    No Brasil, a desigualdade de rendimentos de trabalho dos ocupados cai desde 1995, mas todos queremos visão mais ampla. Ao considerarmos a taxa de ocupação e outras fontes de renda para todos os membros das famílias, a desigualdade de renda domiciliar per capita cai mesmo a partir de 2001.

    Grosso modo há dois grandes grupos de renda. A renda do trabalho e das transferências públicas, de um lado, e a renda do capital, de outro. Sergei Soares, presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mostrou que a desigualdade cai fortemente no primeiro grupo. Também revelou, a partir das Contas Nacionais, que cai a desigualdade entre capital e trabalho. O desafio é decifrar o movimento da desigualdade das rendas do capital.

    O fetiche pikettyano é espiar através do IRPF a renda do capital dos ricos. Os dados de uso público disponibilizados pela Receita Federal brasileira, organizados por atividade principal do declarante, mostram queda da participação dos empresários no bolo de renda tributável de 23,3% para 20,4% entre 2005 e 2010; e aumento na de trabalhadores não financeiros, públicos e privados, de 52,5% para 57,2%, tal como nas pesquisas domiciliares. A parcela dos rentistas, que vivem de riqueza financeira, cai de 0,86% para 0,7%; e a dos executivos financeiros sobe de 4,6% para 4,8%. Não há eutanásia dos rentistas ou dos financistas, tampouco a redenção deles. A parcela conjunta de empresários, financistas e rentistas na renda tributável cai em benefício dos demais mortais, tal como nas Contas Nacionais.

    Embora fuja da narrativa tradicional, não apenas rentistas e capitalistas, mas outros atores sociais detêm riqueza financeira. Esta corresponde a R$ 2,2 trilhões em 2010, menos de 35% do patrimônio declarado total das famílias. A taxa de juros real básica exerce impactos diferenciados algumas vezes antagônicos sobre diversas tramas paralelas entre fluxos e estoques reais e financeiros. Embora esta taxa seja alta hoje, era ainda mais alta nos primórdios da queda da desigualdade: de 7,9% em 2001 a 4,3% nos 12 meses terminados em abril último.

    De volta ao roteiro original, o leitmotiv da mudança da desigualdade aplicada à cena financeira não é o nível dos juros, mas a sua mudança no tempo.

    MARCELO NERI é ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República

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