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    Modesto Carvalhosa: Não foi apenas uma partida de futebol

    16/07/2014 02h00

    Todos os brasileiros, perplexos, procuraram na teoria reducionista que apresenta o futebol como um espetáculo e a derrota humilhante na Copa do Mundo como apenas um jogo o consolo existencial para a evidente depressão coletiva que domina nossos corações e mentes.

    Essa explicação redentora, ainda agora proclamada pelo grande jornalista Clóvis Rossi, da Folha, e pelo festejado J. R. Guzzo, colunista da revista "Veja", já constava das piedosas e magnânimas declarações dos algozes alemães, logo após a indelével derrota dos sete a um.

    Ocorre que essa explicação singela não pegou e não se presta como paliativo. A realidade deve ser procurada no fundamento clássico da antropologia e na psicologia coletiva: a impulsão irredutível do ser humano pelos jogos.

    Para a antropologia, o homem se relaciona dentro da dinâmica da contenda e do conflito, ainda que seja construtivo. O jogo é a matriz dinâmica de nossa conduta, indo do confronto com a morte num ritual de redenção através dos deuses, passando pelos embates permanentes com os demais seres humanos, chegando até ao jogo carteado da paciência, ou do fliperama, numa disputa consigo mesmo.

    A vida, na visão esclarecedora da antropologia, é um permanente jogo que toma sempre e inelutavelmente um significado transcendente e profundamente simbólico que nada tem a ver com sua importância intrínseca ou ritual.

    Tudo é um jogo. O domínio da informática sobre a atividade humana se explica porque ela atende estupendamente a nossa impulsão primitiva e irredutível de jogar em todos os sentidos e em todas as ocasiões. E a irredutível impulsão dos jogos toma esse caráter simbólico que transcende o próprio ato para representar a sublimação dos sentimentos construtivos ou destrutivos nos diversos graus.

    O exemplo palpável dessa impulsão encontra-se no célebre e esplendoroso Palio de Siena, que é o jogo que traduz os sentimentos irredutíveis de territorialidade que perduram na linda cidade medieval/renascentista italiana.

    Dividida em pequenos bairros milenarmente rivais, digladiam-se eles duas vezes por ano na célebre corrida de cavalos, como se estivessem numa guerra de inimigos inconciliáveis. Tudo ali é simbólico: a preparação da disputa, os seus hinos de guerra, a bênção dos cavalos, o desfile das bandeiras, terminando pela consagração cívico-religiosa do bairro-nação vencedor.

    O mesmo ocorreu neste mês, em escala planetária, com a Copa do Mundo –a maior disputa simbólica que conhecemos. A derrota numa Copa, ainda mais quando degradante, acarreta uma reflexão profunda sobre os valores de toda uma nação que se compara com a do povo vencedor do magno torneio.

    Para o nosso país, a derrota na Copa corresponde à perda de uma guerra. Não é por menos que, quando saí à rua no dia seguinte ao sete a um, tive a sensação de presenciar os sentimentos dos franceses quando da capitulação para a Alemanha em 1940. Lá, como aqui, não havia vestígio material de destruição bélica. Apenas mágoa devastadora.

    São, com efeito, os grandes torneios continentais ou mundiais que mais abalam os sentimentos coletivos. Passam a fazer parte da própria da história de um povo, como se vê nas olimpíadas antigas, que marcaram os gregos e toda a nossa civilização há mais de 2.000 anos. Eram também simples competições esportivas, nada mais.

    MODESTO CARVALHOSA, 82, é jurista. Foi presidente do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) no governo Franco Montoro

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