• Opinião

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    Bruno Shimizu e Patrick Cacicedo: Pelo fim da revista vexatória

    21/07/2014 02h00

    Dona Maria, moradora da periferia de São Paulo, viaja centenas de quilômetros todos os finais de semana para visitar seu marido, que está preso. No dia da visita, é obrigada a se despir, abrir a vagina com as mãos na frente de agentes penitenciárias e outras mulheres, fazer força como se estivesse dando à luz, agachar nua três vezes de frente e de costas sobre um espelho e sentar-se nua sobre um banquinho, que contém um detector de metais.

    A invasão de seu corpo é acompanhada por seu filho João, de 6 anos. Depois de assistir a tudo o que é feito com sua mãe, sem entender o que está ocorrendo, mas debulhando-se em lágrimas pela situação aterrorizante, João é submetido à violência parecida.

    A jornada de dona Maria é repetida semanalmente por milhares de pessoas Brasil afora. Só no Estado de São Paulo, o corpo de mulheres, homens, crianças e idosos é invadido mais de três milhões e meio de vezes por ano em revistas para entrada nas unidades prisionais. Em 99,97% dos casos, nenhum objeto proibido é encontrado, conforme dados oficiais. Isso não significa que nos 0,03% dos casos restantes os objetos encontrados sejam propriamente ilícitos, pois incluem-se nesse percentual as apreensões de objetos como alimentos, moedas etc. Além da revista vexatória, todas as pessoas também passam por detectores de metais extremamente sensíveis, de modo que é impossível a entrada de arma, celular ou qualquer objeto metálico por meio das visitas. Se entram objetos proibidos em unidades prisionais, não é a revista humilhante que os impede. A conclusão lógica é que a revista vexatória não atinge os fins a que supostamente se destina.

    Por ter cometido o "crime" de amar uma pessoa presa, dona Maria foi condenada a ser semanalmente estuprada pelo Estado. O pequeno João, por sua vez, foi condenado a assistir a tudo semanalmente, o que configura tortura psicológica, antes de ser ele próprio submetido à violência. Em ambos os casos a pena é perpétua, pois os dois carregarão para o resto de suas vidas as memórias dos dias de horror.

    Se causa estranheza alguém ser condenado por amar ou por existir, não menos estranho é o fato da revista vexatória não ser permitida pela Constituição, nem por qualquer outra lei brasileira.

    A dor de dona Maria, que por anos ficou invisível, se fez sentir naqueles incansáveis defensores dos direitos humanos e ecoou por toda a sociedade. Diante disso, o Senado Federal e a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovaram leis que proíbem de a revista vexatória. Para que entre em vigor, é necessário que a Câmara dos Deputados aprove o projeto e a presidente o sancione. Já no Estado de São Paulo, que concentra mais de um terço das pessoas presas, a lei já foi aprovada pelo Legislativo e aguarda apenas a sanção do governador.

    A tecnologia necessária para que ocorra a revista sem ferir a dignidade das pessoas já existe, são os scanners corporais. Com efeito, o uso desse tipo de equipamento seria inegavelmente mais eficiente para evitar a entrada de objetos ilícitos. Contudo, não se pode afirmar que tal contratação seja condição indispensável à cessação de tamanha violação de direitos, como revela a experiência do Estado de Goiás. É certo que argumentos orçamentários não podem justificar tal violência à dignidade humana.

    O fim da revista vexatória é urgente, pois beneficiará os presos, os familiares, os agentes penitenciários e a própria segurança. Aguarda-se, assim, a aprovação do projeto de lei do Senado e a sanção do projeto estadual, já aprovado no Legislativo, pondo fim a essa barbárie indigna e inútil.

    BRUNO SHIMIZU, 29, e PATRICK CACICEDO, 31, são defensores públicos do Estado de São Paulo e coordenadores do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo

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