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    Alejandro López Castillo: O deserto volta ao Sudeste

    11/09/2014 02h00

    O verão de 2014 nas regiões Sudeste e Sul do Brasil entrará para a história como um dos mais quentes e secos dos últimos tempos. Por um período, com baixa umidade e temperaturas altas, experimentou-se no início deste ano o que poderia ser um deserto. O interessante é que essas duas regiões já pertenceram a um deserto no passado.

    As regiões Sul e Sudeste estão na maior área não desértica de uma faixa tanto ao sul quanto ao norte da Terra, onde se concentram os principais desertos. Essa excepcional umidade deve-se a três motivos: ao rio Amazonas, à floresta amazônica e à cordilheira dos Andes.

    A cordilheira serve como barragem de umidade e ajuda a formar o rio Amazonas e também é responsável por represar os "rios voadores" (correntes de umidade) e fazer chover em diversas regiões do Brasil. O rio Amazonas contém um volume imenso de água, que se evapora constantemente e a floresta amazônica mantém em circulação a umidade local que é transportada para regiões distantes.

    Será que somente um rio e uma floresta dessas proporções evitariam que as regiões Sul e Sudeste se tornassem outra vez um deserto? Pelo ritmo de nosso desenvolvimento, talvez não demore muito para sanarmos essa dúvida. A esperança é que talvez essa pergunta possa ser respondida antes pela inteligência humana, com recursos tecnológicos e conhecimento científico, e não pela mãe natureza.

    Essa coincidência geográfica já deveria ser motivo suficiente de preocupação. A história geológica, entretanto, pode ser ainda mais inquietante. As regiões Sul e Sudeste já pertenceram a um dos maiores desertos em extensão da Terra, isso há mais de 130 milhões de anos.

    Por essa época, a América do Sul ainda estava unida à África, formando o supercontinente Gondwana. O Amazonas nascia ao norte da África e desembocava no oceano Pacífico. Com a ruptura do Gondwana, houve a elevação das cordilheiras dos Andes, o que provocou a alteração do curso do rio Amazonas. Essa ruptura também deu origem ao oceano Atlântico e ao maior fluxo de lava da história da Terra, que sepultou as areias do antigo deserto.

    O clima desértico abrandou até desaparecer por completo e um novo regime de chuva começou a dominar, dando origem ao aquífero Guarani. A umidade incipiente desse ambiente já seria um prenúncio do clima que prevalece atualmente nas regiões Sul e Sudeste do Brasil.

    O antigo deserto foi revisitado em 2014. As cheias no rio Madeira e o baixo nível do sistema Cantareira podem estar conectados, como afirmou o cientista Philip Fearnside, na edição de março revista "Serafina".

    Com o desmatamento em grande escala da floresta amazônica, menos água seria transportada pelos ventos para o Sul e o Sudeste na temporada de chuvas de verão, diminuindo a água armazenada nos reservatórios de São Paulo.

    Esses reservatórios atingiram os níveis mais baixos da história em 2014. Outros fenômenos podem estar contribuindo para a falta de chuva, como o ciclo natural de resfriamento do oceano Pacífico, El Niño e La Niña. No entanto, são mais de 130 milhões de anos de história geológica e climática que nos ensinam a importância de conservarmos a floresta amazônica.

    Por outro lado, também não seria justo deixarmos de comentar que poderia ser instrutivo aprendermos com a história humana. Civilizações sucumbiram por não reconhecer a tempo problemas de escassez hídrica ou de outros recursos naturais, como fizeram supostamente os habitantes da ilha de Páscoa, famosos por seus moais monumentais, estátuas gigantescas feitas de pedra.

    A questão da seca na região mais rica e populosa do Brasil é preocupante: há falta de água. Essa grave escassez só seria interrompida por ciclos de chuvas cada vez maiores, o que não se tem observado. Cabe saber se ficaremos construindo moais ou se enfrentaremos esse problema antes que seja tarde.

    ALEJANDRO LÓPEZ CASTILLO, doutor em química pela USP, é professor da UFSCar - Universidade Federal de São Carlos

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