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    Roberto Luis Troster: Desacato à nação

    02/12/2014 02h00

    Desde a Independência, a história do Brasil está permeada de crises e recessões, de intensidades e durações diversas, que minaram o potencial do país. A maioria tem um padrão comum, com um erro recorrente: uma dinâmica fiscal inconsistente.

    A razão não é nem política nem ideológica, é aritmética. Quanto maior for o endividamento de um país, maior a parcela de impostos a ser destinada a investidores que exigem juros cada vez mais elevados. É um processo que se autoalimenta, favorecendo o rentismo em detrimento da produção, paralisando a economia.

    Também é conhecido como a armadilha da dívida. Para eliminar recaídas, depois de um longo processo de amadurecimento cívico, foi sancionada a Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000.

    A norma coloca um limite ao endividamento do governo e promove a transparência dos gastos públicos. Dessa forma, acabaria com o erro histórico recorrente de descontrole dos gastos públicos.

    Mesmo assim, o atual governo federal conseguiu, por meio do que ficou conhecido como "contabilidade criativa", gastar mais do que o fixado na lei e aumentar a dívida pública, com interpretações imaginativas das contas do Orçamento.

    O uso e abuso da prática de manobras contábeis é tão grande que já há relatórios de consultorias que divulgam as contas públicas com e sem os "ajustes" do governo. Há quem projete que mesmo sem pagar nada de juros, apesar do recorde de arrecadação, o governo terá um deficit em suas contas.

    Os sintomas do descontrole dos gastos públicos estão presentes. O Brasil está andando para trás, o PIB cresceu 0,1% no terceiro trimestre quando comparado ao segundo, mas caiu 0,2% quando cotejado com o do ano passado, a inflação está mais forte e os juros estão numa trajetória ascendente.

    Não é uma questão de ortodoxia ou de heterodoxia. Ilustrando o ponto, o Uruguai e a Bolívia vão crescer, respectivamente, 2,8% e 5% com inclusão social e com responsabilidade fiscal.

    Neste ano, as despesas fiscais do Brasil tiveram um aumento real de 6%, leia-se um inchaço maior do governo, em que um funcionário público já ganha em média 80% a mais do que um do setor privado.

    Agravando o problema, a conta vai aumentar. Está em tramitação um pacote generoso de Natal para congressistas e ministros de Estado, elevando o teto do funcionalismo público com efeito cascata nos escalões inferiores. Anunciam-se apertos e prometem-se superavit, mas na realidade se faz o contrário, aceleram-se os gastos.

    O que está em votação nesta terça-feira (2) no Congresso Nacional, conhecido como manobra fiscal, é uma emenda que permite não registrar como despesas o valor de investimentos no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e as desonerações concedidas a diversos setores empresarias. Vai ser votado se o gasto foi não gasto. É um desacato à lógica e à nação.

    É mais uma tentativa de contabilidade criativa, que, na verdade, é contabilidade destrutiva. Destrói a credibilidade nas contas públicas, o respeito pela lei orçamentária, a confiança nas instituições, a clareza de regras, a prosperidade e o potencial do Brasil. O dano é grande.

    O que está em jogo é muito mais que uma manobra fiscal. É negar o processo cívico que levou à sanção da Lei de Responsabilidade Fiscal. É permitir que recessões endêmicas continuem e que o país caia em mais armadilhas da dívida.

    Desde a Independência, afirma-se que o Brasil é o país do futuro. É uma construção trabalhosa de tentativas e erros. Decide-se nesta terça em Brasília se esse porvir continua a ser edificado ou se vai ficar para depois.

    ROBERTO LUIS TROSTER, 64, doutor em economia pela Universidade de São Paulo, é coordenador do curso de bancos da Fipe - USP. Foi economista-chefe da Febraban (Federação Brasileira de Bancos)

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