• Opinião

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    Carlos Viegas e Claúdia Viegas: Infanticídio e relativismo cultural

    07/01/2015 02h00

    Causou perplexidade a notícia da morte de crianças indígenas cometidas pelos próprios pais, em razão da constatação de alguma deficiência no recém nascido. Naquela cultura as crianças nascidas deficientes devem ser mortas para não se tornarem um estorvo para a comunidade. Há antropólogos e juristas que defendem a prática do infanticídio como sendo uma tradição, uma manifestação cultural a ser preservada.

    No passado essa prática se justificava, pois os indígenas eram nômades e deveriam ser capazes de plantar, caçar, pescar e guerrear, atributos que garantiam a sobrevivência da comunidade.

    Deve-se, contudo, analisar o infanticídio a partir da realidade contemporânea, do indígena cidadão brasileiro, titular de direitos fundamentais protegido pela Constituição a qual determina a atuação do Estado a seu favor.

    Na atualidade os indígenas, mesmo aqueles que vivem em tribos quase isoladas, recebem ajuda para sobreviver. O Estado brasileiro possui equipamentos e institutos que, com os mesmos déficits gerais, proveem sua alimentação, cuidados para com a saúde e a integridade física.

    Ocorre que o movimento de alguns dos profissionais defensores da cultura indígena, contribui para a manutenção daqueles brasileiros na condição de sub-cidadãos. Excluem os índios da proteção do direito professando um relativismo cultural perigoso, preconceituoso, machista e racista.

    A posição assumida pelos defensores da não intervenção do Estado nessa prática, legitima, com o mesmo argumento, a defesa de práticas culturais contra as quais a humanidade tem demonstrado indignação, a título de exemplo: a clitoridectomia, prática cultural milenar, amplamente utilizada em países africanos, que consiste na extirpação do clitóris das meninas para que elas não sintam prazer no ato sexual e permaneçam fiéis aos maridos.

    Ou, também, a obrigatoriedade da utilização da burca, vestimenta milenarmente utilizada em países de tradição muçulmana, que cobre todas as partes do corpo da mulher, inclusive o seu rosto, impedindo a mulher de viver sua individualidade.

    Portanto, diferentemente do que defendem aqueles, o nascimento de uma criança portadora de deficiência deve ser tratado como um caso de saúde pública ou de Direito de Família, qual seja, a busca de tratamento ou a adoção por outras famílias, como se faz com qualquer outra criança brasileira.

    A Constituição Federal no artigo nº 231 reconhece aos indígenas "a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições" entre outros direitos. Contudo, tal dispositivo não pode ser considerado isoladamente senão em conjunto com outros que enunciam direitos tão importantes quanto estes.

    Deve-se destacar que a Constituição também garante, a todos os cidadãos brasileiros, sem distinção de qualquer natureza (raça, credo, gênero, condição social) a inviolabilidade do direito à vida (art. 5º). Diz, ainda, que é dever da família, da sociedade e do Estado "assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, [...] além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão", art. nº 227.

    Ora, não se exclui do âmbito de proteção da Constituição, como querem fazer crer alguns, as crianças indígenas. Estas tem os mesmos direitos que as demais crianças brasileiras e devem ser protegidas pelo Estado. É óbvio, portanto, que para que usufruam desses direitos constitucionais não podem ser assassinadas.

    A hermenêutica constitucional diz que as constituições devem ser interpretadas em sua totalidade, um texto único em que cada dispositivo tem sua importância e que completa o todo. Informa também, que há valores que foram elevados pelo constituinte à condição de norteadores da comunidade e entre estes não está a morte.

    Portanto no caso de conflito entre dispositivos constitucionais deve-se sopesar os institutos a serem aplicados à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. No caso concreto, confrontados o direito à cultura tradicional e o direito à vida, assim, data máxima vênia, nada justifica o assassinato de crianças.

    CARLOS ATHAYDE VALADARES VIEGAS, 47, é mestre em direito e professor de direito constitucional do Instituto J. Andrade
    CLAÚDIA MARA DE ALMEIDA R. VIEGAS, 44, é mestre, doutoranda em direito e professora de direito privado da Uniesp

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