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    José Knoplich, Marcos Goldsmit e Anibal Mezher: Trote é uma experiência frustrante

    21/01/2015 02h00

    Ainda ontem foi o encontro comemorativo da turma dos doutorandos de 1959 da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo num dos hotéis da cidade de São Paulo.

    Essa turma de 80 alunos ficou conhecida como a "Turma do Centenário" porque iniciava o curso enquanto São Paulo comemorava o seu quarto centenário, no ano de 1954. Todos ingressaram após um exaustivo exame vestibular com provas escritas, orais e práticas na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).

    Esses alunos sofreram um trote dos veteranos, muito agressivo que rivaliza com as descrições que agora são motivos de vários artigos e considerações nesta Folha.

    O trote acentuado provocou reações nessa nova turma que tentou aboli-lo nos anos seguintes trocando o trote violento por ações positivas, tais como: doação de sangue para o Hospital das Clínicas e também tipos de confraternizações que incluíam jogos, bailes, etc, nas dependências do Centro Acadêmico e da Associação Atlética para tentar criar um ambiente colaborativo entre os veteranos e a nova turma recém ingressada.

    O que se observou, porém, foi uma total animosidade entre os antigos alunos e os calouros e por essa razão os primeiros nem participaram destes eventos de cunho de confraternização.

    Vive na lembrança desta turma de 1954 o calouro Edgard Raffaelli Jr., de saudosa memória, quem destacou-se nessa luta. E momentos dessa história foram marcados também pelo fato de que para realizar esses acontecimentos essa turma não recebeu apoio explícito da direção da Faculdade.

    Durante todo o curso de seis anos ficou claro que havia um relacionamento difícil entre aqueles que praticaram o trote violento e a nova turma. Nesse encontro recém-realizado, 60 anos depois do ocorrido, houve relatos de médicos já octogenários que passaram por traumas psicológicos e emocionais que refletiram durante anos em suas formações médicas, inclusive de alguns que suspenderam por alguns anos a continuidade de seus estudos.

    No entanto, essa tomada de atitudes diferenciadas da turma do centenário poderia ter representado o início de uma virada de comportamento, tanto da diretoria da Faculdade de Medicina como da Reitoria da Universidade de São Paulo, em relação à continuidade dessa recepção selvática e irracional dos veteranos.

    Infelizmente não foi o que aconteceu. Prova disso é que no ano seguinte à entrada da Turma do Centenário na FMUSP não houve nenhum tipo de trote, mas a turma subsequente reiniciou esta prática hedionda e irresponsável, que continua até os dias atuais.

    Outra consideração que às vezes parece servir de justificativa para a continuidade desta prática é que as turmas de alunos da Faculdade de Medicina foram sofrendo alterações na sua constituição, ou seja, em 1954 eram apenas dez mulheres em meio a 70 homens, e nos anos seguintes essa proporção foi alterada e atualmente, as mulheres que ingressam no curso de medicina são equivalentes aos homens, chegando a compor às vezes um índice que ultrapassa a presença masculina nesse curso.

    Será que a moderna metodologia estatística que existe atualmente nas teses e artigos médicos não poderia analisar quais os verdadeiros componentes emocionais, sexuais e patológicos que estão influenciando a prática deste tipo de recepção por parte dos veteranos, tanto em relação aos homens como em relação às mulheres?

    Isso que está ocorrendo nas Faculdades de medicina deveria ser estudado com profundidade para que possa se produzir melhores médicos, mais humanizados e preocupados com as realidades sociais de onde vivem.

    Análises do comportamento em relação ao trote pode se ampliar na busca de respostas sobre a ética e o abuso de poder que pode acometer os veteranos no exercício da medicina e de outras profissões que implicam em conhecimento aliado a humanismo.

    Portanto esse não é só um problema da Faculdade de Medicina e sim da formação do profissional brasileiro, seja ele médico ou de qualquer outra profissão que dependa da passagem pela Universidade.

    JOSÉ KNOPLICH, 79, MARCOS GOLDSMIT, 83, e ANIBAL MEZHER, 80, são médicos e integrantes da Turma do Centenário da Faculdade de Medicina da USP

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