• Opinião

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    Anna Veronica Mautner: O ninho onde o hoje nasceu

    25/02/2015 02h00

    Pode ser que alguém já tenha escrito sobre como era a vida da classe média paulistana nos meados do século 20, em ruas de pequeno comércio. Na frente ficavam as lojas; atrás, os moradores e, nos fundos, os quintais –todos muito parecidos; poucos não tinham hortênsias e pelo menos um limoeiro.

    Para nós, mulheres, havia dois pontos de encontro para trocar ideias: no quintal, por cima do muro, ou na calçada, no final do dia.

    Praticávamos todo um ritual para ir à calçada conversar com as vizinhas. Tínhamos que estar de banho tomado, cabelo penteado e roupa bem passada. Não se tratava de elegância, mas sim de respeito. Já nos fundos ninguém pensava em etiqueta. Se estávamos lá era porque estávamos trabalhando –lavando, passando, cozinhando.

    O bar da esquina era o ponto de encontro dos homens. Parece complicado, mas era absolutamente natural e ninguém tinha nenhuma dúvida sobre qual era seu lugar e como se comportar nele.

    A rotina semanal e mensal era comum a todos os moradores. Não se recebiam visitas e não se visitava ninguém durante a semana. Passear e visitar era coisa para se fazer sábado e domingo. Essa rigidez não pesava a ninguém: era assim a rotina e acabou! Quem ainda tiver avó ou parente idoso que morava nesse tipo de bairro que pergunte.

    Orgulhar-se de não conhecer ninguém da rua ou de nunca ter conversado com vizinho é coisa recente, modernidade. Hoje em dia as pessoas se orgulham de morar há 30 anos num edifício e não conhecer nem o vizinho de parede. Que diabo de orgulho é esse? Tentei pensar na origem disso e não cheguei a nenhuma conclusão.

    Não havia questão de classe social nem cultural, pois todo mundo era muito parecido ou pelo menos aparentava ser. Ser diferente não era mérito, era mera esquisitice inútil, pois só gerava solidão. A classe média sabia das novidades pelos vendedores ambulantes.

    As mulheres estavam habituadas a atender os prestadores de serviços –encanadores, eletricistas, marceneiros– e também os vendedores ambulantes que traziam, do Brás e do Bom Retiro, áreas de atacadistas, as "penúltimas novidades". Para conhecer as últimas era preciso ir até a cidade.

    Os vizinhos eram muito iguais na convivência e muito diferentes na origem. Havia os estrangeiros, imigrantes de além-mar, e os migrantes de outros cantos do Brasil.

    Em poucos meses, todos adquiriam hábitos muito semelhantes fora do muro das casas. Ninguém se orgulhava ou se envergonhava de ser diferente. Apenas aniversários, noivados e casamentos eram momentos de exibir as diferenças.

    Os Natais não eram iguais. Muito menos as Páscoas e outras comemorações familiares. Mas o 1º de maio era sempre dia de piquenique para todos. A rua desses bairros era o caldeirão onde nascia o mundo futuro. Dentro de casa cada um se esmerava em manter suas tradições; fora, quanto mais parecido melhor. Era sinal de adaptação.

    Como isso foi dar nesses bairros modernos em que cada um é de um jeito e ninguém parece com ninguém, dentro ou fora de casa?

    Será que nos igualamos diante da tela da televisão? Nós, no bairro, perdemos muito da nossa autonomia. A televisão nos ensinou a pôr a mesa, a servir os pratos e a nos comportarmos. A televisão nos invadiu e nos ensinou a sermos iguais dentro de casa. A chegada da TV em cores acabou com o universo privado de cada um. Passamos a ter mais unanimidade do que intimidade.

    Eu vivi todo esse processo e sinto ainda palpitação ao lembrar não só o quanto ganhei mas também o quanto venho perdendo.

    ANNA VERONICA MAUTNER é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (Ágora)

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