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    João Santana: Calote não é ajuste fiscal

    03/03/2015 02h00

    É lamentável anunciar algo assim, mas, depois de quatro meses sem receber o que lhe é devido contratualmente, a Constran não poderá dar prosseguimento ao trecho da Ferrovia Norte-Sul que vinha construindo em Goiás.

    Temos dois contratos assinados com a Valec, empresa do Ministério dos Transportes, um referente a 150 quilômetros, na Norte-Sul, e outro, por 170 quilômetros, na Fiol (Ferrovia Oeste-Leste), esse no interior da Bahia. Os pagamentos de ambos encontram-se atrasados.

    Em quase 60 anos de história é a primeira vez que não recebemos nem sequer para honrar a folha de pagamento da obra. Falei na segunda (2) com o ministro Antônio Carlos Rodrigues, dos Transportes, que me informou não ter recebido recursos do Ministério da Fazenda.

    Em situações assim, as empresas podem recorrer aos bancos, onde descontam a fatura. Agora, nem isso é possível. O sistema financeiro bloqueou qualquer operação com o nosso setor, se envolver o governo federal como pagador.

    Atenção: os bancos não estão recusando recebíveis de uma prefeitura pequena do interior. Eles querem distância do Tesouro Nacional. Sabe quais são os primeiros bancos a fechar as portas para a operação de desconto de duplicatas? O Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, controlados pelo governo. Detalhe: embora não recebamos a fatura emitida, somos obrigados a recolher os impostos a ela relacionados.

    Nossa situação financeira só não é delicada porque mais da metade do faturamento é oriundo da iniciativa privada. Alguém poderá relacionar esse inferno astral à Operação Lava Jato –já que a Constran é controlada pela UTC. Mas não é o caso. Primeiro porque a Constran não integra a lista de empresas investigadas. Depois porque o governo vem atrasando centenas e centenas de contas devidas, até mesmo do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).

    O gestor público tem a obrigação de equalizar suas contas. Mas estamos diante de um ajuste fiscal?

    Nos anos 90, tive o privilégio de tocar a Secretaria da Administração durante o governo Fernando Collor.

    O país estava destroçado financeiramente. Cortamos cargos de confiança, desligamos funcionários, fechamos ou vendemos empresas, acabamos com as mansões dos ministros de Estado e leiloamos mais de 4.000 automóveis. Fomos à lista de despesas do governo e cortamos vários e vários itens. Gostem ou não do que foi feito naquele tempo, tratava-se de um projeto de ajuste fiscal de verdade.

    E agora? Em vez de propor cortes e eliminar linhas de despesas, o governo apenas não paga. Em outros países, o nome disso é calote e rompimento de contrato. No Brasil, batizamos de "ajuste fiscal".

    Historicamente, quando o governo tem planos de enxugar despesas, ele chama seus fornecedores e informa o que será cortado, dando às empresas condições de se planejar. É chato, é ruim, mas é honesto e transparente.

    O oposto é manter, de um lado, o discurso de que nada será cortado, que o PAC será mantido, que os programas sociais não sofrerão cortes –e, de outro, reter pagamentos devidos por serviços prestados, como se faz neste exato momento.

    Criou-se uma realidade discutível. Enquanto o governo federal empurra para a sociedade o peso do "ajuste", na forma de mais impostos e mais desemprego, não aplica ao Estado qualquer ajuste real.

    Por exemplo: quantos dos 39 ministérios foram fechados nos últimos meses? Para termos de comparação, o governo Sarney, considerado inchado, operava com 34.

    Outro dia, fui olhar a lei complementar nº 101, a famosa Lei da Responsabilidade Fiscal. Ela diz claramente que "a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente". Um doce para quem encontrar algo planejado e transparente nesse processo.

    JOÃO SANTANA, 57, é presidente da Constran e vice-presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada. Foi ministro da Infraestrutura e secretário da Administração (governo Collor)

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