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    opinião

    Bolívar Moura Rocha: A presidente poderia ser processada?

    06/05/2015 02h00

    O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, a quem caberia receber eventual denúncia contra a presidente, Dilma Rousseff, tem dito que fatos anteriores ao mandato atual não poderiam ensejar um processo de impeachment. Este artigo explica porque essa tese é improcedente.

    Um presidente da República pode ser afastado como resultado de três espécies de condenação: pelo Supremo Tribunal Federal, por crime comum relacionado ao exercício do cargo; pelo Senado Federal, por crime de responsabilidade, em processo de impeachment; e pelo Tribunal Superior Eleitoral, em certas ações eleitorais.

    São, todas, situações inéditas em nossa história; o mandato de Fernando Collor (1990-1992) encerrou-se com sua renúncia, não com a condenação no processo de impeachment, que limitou-se a suspender seus direitos políticos.

    A primeira hipótese –processo no STF– também tem se prestado a equívocos em razão de dispositivo da Constituição Federal (art. 86, §4°) que prevê que o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.

    O alcance dessa regra foi fixado pelo Supremo Tribunal ao decidir, por duas vezes, que o então presidente Collor não poderia ser processado por supostos crimes eleitorais. (Os fatos tinham a ver com alegações infamantes divulgadas pela candidatura Collor a respeito do oponente, Luís Inácio da Silva).

    Em ambos os casos o Supremo decidiu que o dispositivo confere uma imunidade temporária à persecução, não à investigação, penal por atos estranhos ao exercício das funções presidenciais.

    Em seu parecer, o então procurador-geral da República, Aristides Junqueira, analisou a lógica, antecedentes e histórico legislativo do dispositivo, para identificar-lhe o objetivo: "resguardar o chefe de Estado com relação a processos penais, desde que se tratasse de fato estranho ao exercício de suas funções de presidente da República, já que, com relação a fatos atinentes à função, a responsabilização é inafastável".

    E se o crime funcional houver sido cometido na vigência de mandato anterior? As decisões do Supremo nada disseram a respeito, simplesmente porque os casos julgados naquele momento não envolviam essa situação. De resto, à época a Constituição não previa a possibilidade de reeleição.

    O processo de impeachment exige análise distinta. É que não se aplica a ele a regra citada: por definição, os crimes de responsabilidade que ensejam o impeachment nunca serão estranhos ao exercício das funções de presidente da República.

    Tem sido defendida a tese de que fatos anteriores ao mandato atual não poderiam ensejar um processo de impeachment. O raciocínio é que sendo a sanção a perda de mandato, encerrado este seria impossível aplicar a pena em questão.

    Essa interpretação não se apoia em qualquer dispositivo da Constituição, que nada diz a respeito, e tampouco na jurisprudência do STF. Admiti-la equivaleria a criar, sem amparo em lei, restrição ao importante princípio da responsabilidade do chefe do Executivo.

    A Lei do Impeachment admite (art. 15) a instauração do processo mesmo quando o presidente esteja momentaneamente afastado do cargo –em razão de licença, por exemplo. No julgamento do ex-presidente Collor, o Supremo decidiu que o processo poderia continuar mesmo após sua renúncia, ao entendimento de que além da perda do mandato, há a sanção consistente na suspensão dos direitos políticos. Se lei e jurisprudência admitem processo contra quem não está no cargo, que dirá contra quem foi reeleito e encontra-se no exercício pleno do mandato.

    É comum que crimes somente venham à tona passado algum tempo de sua prática. Em regime, como o nosso, que permite a reeleição, o hipotético presidente criminoso poderá estar (novamente) no exercício do cargo quando os fatos delituosos se tornarem conhecidos em toda a sua dimensão. Não permitir que ele seja então processado é solução que agride o senso comum, ao qual deve andar sempre aliado o bom direito.

    Em seu livro de 1965 sobre o impeachment, que segue referência obrigatória, o ex-senador e ex-ministro do Supremo, Paulo Brossard, aponta a marcada natureza política do instituto para afirmar que restabelece-se a jurisdição política, se o antigo governante ao cargo retornar. O impeachment pode então ser iniciado ou prosseguido.

    A terceira e última hipótese de afastamento de presidente da República é aquela de condenação em processo conduzido pelo Tribunal Superior Eleitoral –seja em ação de impugnação de mandato eletivo, seja em ação de investigação judicial eleitoral fundada, por exemplo, em abuso de poder econômico.

    Encontram-se em curso processos ajuizados pelo PSDB com o fim, precisamente, de cassar o mandato da presidente. As alegações incluem o tema do carreamento de recursos da Petrobras para a campanha eleitoral – propósito, a Lei das Eleições reputa o candidato responsável, ao lado do tesoureiro, pela veracidade das informações financeiras e contábeis de sua campanha.

    Uma das ações ainda não tem sentença, ao passo que a outra foi julgada improcedente em primeira instância e aguarda, em grau de recurso, voto-vista do Ministro Gilmar Mendes. Diferentemente de hipotética condenação pelo Senado Federal ou pelo STF, decisão condenatória do TSE levaria também ao afastamento do vice-presidente, e à realização de novas eleições.

    Haveria razões para a presidente não vir a ser ré em processo de impeachment, ou por crime comum ligado ao exercício de sua função. A primeira, e mais importante, seria a hipótese de não os ter cometido. Mas entre elas não está uma suposta vedação constitucional a que seja processada. Esta não existe.

    BOLÍVAR MOURA ROCHA, advogado, é doutor em ciências políticas pela Universidade de Genebra

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