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    opinião

    Prefeitura de São Paulo deve sancionar lei que proíbe o comércio de foie gras? Não

    23/05/2015 02h00

    GABRIEL MATTEUZZI: FIM DO LIVRE ARBÍTRIO

    Lembro das refeições de quando era criança, na Espanha, e fico fascinado como, apesar dos costumes à mesa serem simples, comíamos muito bem. Minha mãe fazia questão que tivéssemos um jantar cinco estrelas em ocasiões especiais, Natal e Ano-Novo. Os produtos, aqui considerados "caríssimos", como caviar ou foie gras (do francês, fígado gordo), lá eram acessíveis.

    Fui educado para priorizar gastos, economizávamos durante o ano para poder "chutar o pau da barraca" em ocasiões especiais. Penso que foi daí que surgiu meu interesse pela profissão –que se resume ao prazer de servir e de comer.

    Os anos passaram, entrei na cozinha e aos poucos fui aperfeiçoando o conhecimento de produtos que são sinônimos de técnica. Um deles é o foie gras, presente em todos os restaurantes por onde passei durante meus 20 anos de carreira e onde aprendi a elaborá-lo de maneira correta para extrair o melhor dele.

    Os primeiros relatos sobre o consumo de fígado de patos ou gansos são do século 25 a.C., onde se buscava aves que estavam em período migratório e tinham comido quantidades acima da média para suportar a longa viagem. Por isso, apresentavam fígados mais gordos do que o normal. Esse método é seguido desde 1812 pela Patería de Sousa, na Espanha.

    Pouco depois percebeu-se que, com o desenvolvimento da técnica de engorda dos patos, conhecida como "gavage", era possível dispor do produto não apenas nas épocas migratórias das aves, mas o ano inteiro. Assim, essa prática se espalhou pela Europa e pelo mundo.

    Com a experiência, constatei que a relação entre a qualidade do produto está diretamente relacionada à qualidade de vida de qualquer animal. Se o animal for maltratado, o alimento não se tornará o produto de boa qualidade que buscamos.

    O processo de "gavage" tem que ser controlado e realizado de forma precisa para não causar danos a outras partes do animal, pois do pato não se consome apenas o fígado. Consumimos também o "magret" (peito) e o "confit de canard" (coxa e sobrecoxa confitado na própria gordura do pato).

    O período de engorda ou confinamento de animais é algo realizado pela nossa sociedade há milênios, não só com patos ou gansos, mas como todo animal que passa pelo processo de abate, como bovinos. Bois são confinados por meses em um espaço reduzido e sendo alimentados, muitas vezes, de forma compulsiva a fim de ganhar peso e lotar as prateleiras dos supermercados em curto espaço de tempo.

    Os índices de morte prematura de galinhas e perus são maiores que os dos patos ou gansos, seja pela quantidade de hormônios a que são submetidos ou pelas precárias condições em que vivem.

    Devemos proibir tudo isso também? Proibiremos a pesca de arrastão –técnica usada na maior parte do nosso litoral que, sob o ponto de vista ambiental, prejudica nossa fauna marinha? Essa lei abrirá precedente para futuras leis? Ou simplesmente estamos perdendo nosso poder de livre arbítrio? Afinal quem não quiser comer foie gras, não precisa comer.

    Mesmo sancionada, a lei não solucionará o possível problema em questão: o bem-estar dos animais. Simplesmente fechará a porta de alguns produtores que tentam produzir de forma artesanal uma iguaria consumida por poucos.

    Do ponto de vista turístico, uma cidade como São Paulo –que se pretende a "capital mundial da gastronomia", segundo a própria Câmara Municipal da cidade– pode se dar ao direito de vetar a venda de um produto considerado por muitos ícone da gastronomia mundial?

    Espero que essa lei não seja sancionada. Espero também que meus clientes, assim como minha equipe e eu, possamos continuar desfrutando do tão apreciado foie gras.

    GABRIEL MATTEUZZI, 38, chefe de cozinha e proprietário do restaurante Tête à Tête, é formado pela Escola Hofmann, em Barcelona

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