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    opinião

    Ana Westphal: Entrevista ficcional com Foucault

    03/06/2015 02h00

    Salvo adaptações mínimas próprias à transposição ficcional, todas as respostas atribuídas ao filósofo Michel Foucault nessa entrevista apócrifa foram extraídas de seus ditos e escritos já publicados.

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    Como o sr. se sente por ter sido barrado pelo cardeal d. Odilo Scherer, justamente quando a PUC-SP estava a ponto de oficializar uma cátedra em seu nome?

    Fico perplexo. Lembro que estive no Brasil em 1975, quando o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado. O Exército alegou que ele havia se enforcado em sua cela. Foi o arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, que promoveu, na catedral da Sé, uma cerimônia ecumênica em sua memória.

    O cardeal presidia a cerimônia: caminhou diante dos fiéis e os saudou exclamando "shalom, shalom". Em torno da praça havia policiais armados. A polícia teve que recuar: não pôde fazer nada contra a multidão. A Igreja era o refúgio dos dissidentes e opositores da ditadura. É estranho que hoje, em plena democracia, as posições tenham se invertido.

    Como o senhor interpreta essa virada? Quais são suas relações com o catolicismo?

    Passei meus últimos anos vasculhando documentos na Biblioteca Saulchoir, dos Dominicanos, em Paris. Para escrever meus últimos livros, me encantei com Tertuliano, Cassiano, são João Crisóstemo, com o cristianismo primitivo, as técnicas da confissão, os exercícios espirituais do Concílio de Trento.

    Não por acaso, quando morri, os dominicanos foram os únicos que se ofereceram a acolher meu arquivo. Graças a eles meus manuscritos ficaram na França. Tenho dificuldade em entender o que seria uma universidade católica da qual fosse banida a liberdade de pensamento.

    É isso tão essencial?

    É preciso libertar-se da sacralização do social como única instância do real, e deixar de considerar vento essa coisa essencial na vida e nas relações humanas –o pensamento.

    O sr. sabia que seus livros são incompatíveis com os princípios do catolicismo, como reza decisão do Conselho Superior da Fundação São Paulo, composto por d. Odilo, bispos e reitora?

    Meus livros nunca foram dirigidos contra a Igreja. Apenas põem a nu mecanismos de poder que atravessam todas as instituições.

    É verdade que a Igreja inventou um novo tipo de poder, que chamei de pastoral: cuidar do rebanho, cuidar de cada alma. Mas sempre insisti que em qualquer relação de poder nada está decidido de antemão –há contrapoderes, há revides, há resistência, há reversibilidades.

    A própria espiritualidade pode ter sido uma resistência, num momento determinado, a formas hierárquicas de poder.

    Se meus livros foram dirigidos contra alguém, foi contra mim mesmo. De que valeria pesquisar, se fosse apenas para confirmar o que já sabíamos? O que me move é a única curiosidade que vale –saber se podemos pensar diferentemente do que pensávamos antes.

    Como numa viagem, a pesquisa nos rejuvenesce, mas também envelhece a relação que temos conosco mesmo. É aí onde é preciso deixar-se para trás, reinventar-se.

    Que tipo de homens o senhor admira, afinal? Homens engajados ou os que desaparecem? Em qual categoria o senhor se inclui?

    Não são essas as categorias que definem os homens. Admiro os que introduziram no mundo em que vivemos a única tensão da qual não cabe rir nem envergonhar-se: aquela que rompe o fio do tempo.

    ANA WESTPHAL é mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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