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    opinião

    Ricardo Antunes: A servidão involuntária

    05/06/2015 02h00

    Desde os primórdios da humanidade a luta pela dignidade do trabalho tem sido prometeica. No Brasil, se o trabalho indígena foi um exercício comunal, a saga europeia do colonizador nos impôs o trabalho compulsório, inicialmente dos aborígenes e depois dos africanos.

    Com a abolição da escravatura, o imigrante branco foi escolhido para o mundo industrial, excluindo-se os negros que povoavam a produção rural. E o trabalho negro, especialmente o das mulheres, foi empurrado para o emprego doméstico, perpetuando a herança servil da nova casa-grande urbana.

    Foi a partir de 1930 que a modernização capitalista do país obrigou, depois de décadas de lutas operárias, a se pensar em uma legislação social protetora do trabalho.

    De modo conflituoso e contraditório, nasceu a CLT, que tinha a aparência da dádiva, mas resultava de uma real impulsão operária. Converteu-se na verdadeira constituição do trabalho no Brasil, ainda que seus direitos excluíssem os assalariados do campo.

    Hoje estamos à frente de um novo vilipêndio em relação aos direitos do trabalho, cujo significado e consequência têm requintes comparáveis à escravidão, ainda que em sua variante moderna. Descontentes com os direitos conquistados pela classe trabalhadora, neste contexto de crise, os capitais exigem a terceirização total, conforme consta do projeto de lei nº 4.330/04, agora rebatizado no Senado como projeto de lei da Câmara nº 30/2015.

    Em nome da falaciosa "melhoria da qualidade do produto ou da prestação de serviço", o projeto elimina de uma só vez, a limitada disjuntiva existente entre atividades-meio e atividade-fim.

    Uma empresa poderá recorrer a outra, para contratar trabalhadores, eliminando a relação direta entre empregador e assalariado. Como na escravidão. Neste passe de mágica, todas as modalidades de trabalho poderão ser terceirizadas. Até os pilotos de aeronaves.

    Com um Congresso lépido e faceiro nas práticas negociais, impulsionado pela lógica volátil do capital financeiro, uma nova servidão involuntária está sendo urdida.

    Dinheiro gerando mais dinheiro, na ponta fictícia do sistema financeirizado global e respaldado em uma miríade de formas pretéritas de trabalho (precarizado, flexibilizado, terceirizado, informalizado, "cooperado", escravo e semiescravo) na base da produção.

    As falácias presentes no projeto de lei são todas conhecidas: em vez de criar empregos, ela desemprega, uma vez que os terceirizados trabalham mais tempo e ainda percebendo menores salários.

    Em vez de "qualificar" e "especializar", temos o contrário, pois são nas atividades terceirizadas que se ampliam ainda mais os acidentes, as mutilações, os adoecimentos, os assédios, as mortes e os suicídios. Basta lembrar a indústria petrolífera e de energia elétrica.

    Assim, o projeto de lei da Câmara não quer regulamentar os terceirizados, mas de fato desregulamentar o trabalho em geral. Se o quisesse, era só alterar seu o artigo 2º, eliminando a possibilidade de terceirização em "qualquer de suas atividades" e mantendo a regulamentação dos terceirizados que atuam nas atividades-meio. Simples assim, mas isso desmascara o real objetivo do famigerado projeto de lei.

    O que motiva os seus defensores é de fato a redução salarial, de custos e de direitos da totalidade da classe trabalhadora, pejotizando ainda mais as relações de trabalho.

    Já está mais do que hora de dizer –em alto e bom som– que a terceirização avilta o trabalho em todas as suas formas e deve, por essa razão, ser combatida por todos.

    É preciso acrescentar, porém, que o que está na pauta hoje é o risco iminente da terceirização total, inclusive das atividades-fim, que deve ser obstada para que não se gere ainda mais trabalho aviltado.

    RICARDO ANTUNES, 62, é professor titular de sociologia da Unicamp. É autor de "Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil III" (Boitempo) e de "The Meanings of Work" (os sentidos do trabalho), publicado na Índia pela editora Aakar Books

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