• Opinião

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    David Oliveira de Souza

    As bombas no hospital de Kunduz

    14/10/2015 02h00

    A maior proteção que os profissionais da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) recebem em áreas de guerra não vem de cercas eletrificadas ou de agentes armados, mas do vínculo construído com a população local e o respeito recebido das partes do conflito.

    O conhecido símbolo vermelho e branco nas bandeiras hasteadas em hospitais, nas camisetas de trabalho, nas ambulâncias e contêineres de medicamentos, comunica imparcialidade, neutralidade e independência. Deixa claro que se está naquele local para salvar vidas, dar testemunho e aliviar o sofrimento.

    É profunda a dor de imaginar as equipes no hospital de Kunduz, no Afeganistão, supostamente inviolável pelo direito humanitário, sendo bombardeadas. Pensar em sua angústia sob os aviões voltando repetidas vezes para atingir o mesmo local, de coordenadas bem conhecidas por Cabul e Washington.

    A imagem de nossos colegas mortos e dos pacientes queimando sem chance de defesa, imobilizados no pós-operatório ou nas unidades de terapia intensiva, nos enchem de indignação. Hoje, naquela região populosa já não há mais nenhum serviço de saúde tão bem preparado para atender doentes e feridos.

    Criar um hospital em áreas de conflito é uma operação delicada. Depois de negociações com governos e atores locais, ocorre a missão exploratória. Profissionais experientes visitam a região e identificam as principais necessidades de saúde da população.

    Busca-se então um local de trabalho seguro e acessível. A MSF deixa claro para os moradores e as partes beligerantes, seu compromisso com os princípios humanitários de atender a qualquer pessoa que necessite , não tomar lados no conflito e manter decisões independentes de governos e doadores.

    A vida das equipes é austera e por questões de segurança, muitos passam vários meses apenas indo de casa para o hospital e vice-versa. Uma rede de confiança com a comunidade se forma e as pessoas sentem-se seguras para ali buscar atendimento.

    Quando um hospital como o de Kunduz explode, a população não fica somente sem assistência. Ela perde um potente espaço simbólico de cuidado e acolhimento, que a ajudava a lembrar de que não estava sozinha no meio da guerra.

    Eu tinha uma paciente cuja janela da casa dava para o posto de saúde de MSF na favela da Maré, no Rio. Ela dizia que quando os tiroteios começavam, ver que estávamos ali diminuía sua sensação de abandono.

    Médicos Sem Fronteiras tem insistido em seu compromisso com as populações vulneráveis do Afeganistão. Em 2004, deixou o país após o assassinato de cinco membros da equipe na província de Badghis.

    Em 2009, apesar das perdas civis e militares terem atingido níveis sem precedentes, a organização relançou suas atividades em Cabul e na província de Helmand, avançando gradualmente para outras áreas.

    O bombardeio de Kunduz foi um gravíssimo episódio, mas as evidências parecem deixar claro que a ONG não desistirá do Afeganistão.

    Nossos colegas e pacientes de Kunduz levam com eles um pedaço de nossos corações. Seguimos inquietos sobre como ficará a população da região. Os primeiros relatórios sobre o bombardeio devem sair no início de novembro.

    O reconhecimento do erro pelas autoridades americanas foi um avanço, mas só a investigação transparente dos fatos poderá trazer a segurança de que violações dessa natureza não voltarão a ocorrer.

    DAVID OLIVEIRA DE SOUZA, 40, médico, é mestre em relações internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris e membro associado da ONG Médicos Sem Fronteiras, da qual foi diretor-médico no Brasil de 2007 a 2010

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