• Opinião

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    Sérgio Adorno, Renato Sérgio de Lima e Paulo Sérgio Pinheiro

    Estatuto do Desarmamento deve ser revogado? Não

    14/11/2015 02h00

    UMA PROPOSTA IRRESPONSÁVEL

    No Brasil, em momentos de crises macroeconômica e política, o debate nacional se reduz à agenda econômica e o olhar do Poder Público se afasta de outros temas. Neste cenário de acentuada polarização social, grupos valem-se da oportunidade para pautar a agenda política com temas reacionários que incitam ódio e intolerância.

    Prova disso é que o Brasil, contra todas as evidências disponíveis, deu um passo largo rumo ao precipício com a aprovação, pela comissão especial da Câmara dos Deputados, do projeto de lei 3.722/12, que revoga o Estatuto do Desarmamento.

    Os parlamentares aprovaram um texto que, entre outros pontos, reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para a compra de armas e autoriza pessoas processadas ou investigadas a ter e portar armas.

    O aumento do acesso às armas de fogo não impedirá o crime violento. Há várias pesquisas científicas que indicam que o Estatuto do Desarmamento, em vigor desde 2004, conteve a escalada de homicídios.

    O crescimento médio anual de assassinatos por arma de fogo antes do estatuto era mais de 15 vezes maior do que o observado entre 2004 e 2013; 121 mil pessoas deixaram de ser mortas, segundo pesquisa de Daniel Cerqueira, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), e Glaucio Soares, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

    O Congresso, com honrosas exceções, teima em avançar numa agenda conservadora e retrógrada, desmontando os avanços conquistados na esteira da Constituição de 1988. A pauta é fundada em prognósticos equivocados e soluções comprovadamente ineficientes ao longo das últimas décadas. Abre-se mão da ideia de justiça pública.

    Os Anuários Brasileiros de Segurança Pública demonstram que convivemos anualmente com mais de 58 mil mortes violentas, cerca de 50 mil estupros e graves violações aos direitos humanos. Isso para não falar das constantes ameaças do crime organizado, do crescimento dos roubos, do medo e da insegurança.

    A violência faz parte do cotidiano brasileiro. Não bastasse a ação de criminosos, a intervenção policial já é a segunda causa de mortes violentas intencionais. Em paralelo, sobe o número de policiais mortos em vários Estados.

    Estamos diante de um "mata-mata" extremamente cruel, que incentiva a ideia de policial vingador, porém não oferece a ele nada além de uma insígnia de herói quando de sua morte em "combate".

    Temos uma sociedade fraturada sobre como lidar com crimes e criminosos. Segundo pesquisa Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 50% dos residentes nas grandes cidades brasileiras concordam com a frase "bandido bom é bandido morto". Esse percentual é maior entre homens moradores da região Sul do país e autodeclarados brancos.

    Por outro lado, 45% da população discorda dessa afirmação. Esse grupo é proporcionalmente mais composto por mulheres, autodeclarados negros, jovens e moradores da região Sudeste.

    Há uma disputa pela legitimidade do matar e já não é mais possível afirmar que a sociedade clama para que as polícias mantenham o confronto violento como modelo de padrão de atuação.

    Ao invés de armar a sociedade e cultuar a morte, há espaço para modernizar e aperfeiçoar a segurança pública e valorizar a vida. A redução das mortes violentas no Brasil é uma causa maior para a democracia e deve estar fundada numa ampla aliança suprapartidária.

    Diante desta realidade, a revogação do Estatuto do Desarmamento é uma proposta irresponsável, mal informada, demagógica e que atenta contra a proteção da vida dos cidadãos. Ela ainda pode e deve ser barrada na Câmara dos Deputados ou no Senado.

    SÉRGIO ADORNO, 63, é professor titular de sociologia e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência - NEV/USP
    RENATO SÉRGIO DE LIMA, 45, é vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Fundação Getulio Vargas
    PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 71, é ex-secretário de Estado de Direitos Humanos (governo FHC)

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