• Opinião

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    Peter Demant

    Islã e democracia

    23/11/2015 02h00

    "Quando houver moça virgem, desposada, e um homem a achar na cidade, e se deitar com ela, então trareis ambos à porta da cidade, e os apedrejareis, até que morram." Versículo do Alcorão? Não, está na Bíblia (Deuteronômio 22:23,24).

    "Quem matar uma pessoa (...) será considerado como se tivesse assassinado toda a humanidade; quem a salvar, será reputado como se tivesse salvo toda a humanidade." Sermão de Jesus? Não, revelação a Maomé (Alcorão 5:32).

    Há entre islã, judaísmo e cristianismo mais semelhanças do que diferenças e eles compartilham muitos valores que estão na base dos direitos humanos; mas incluem outros valores, opostos. As maiores diferenças não estão entre as religiões monoteístas, mas dentro delas.

    O momento é de luto. François Hollande, Barack Obama e Angela Merkel podem declarar que os terroristas não tem nada a ver com o islã, religião de paz. Mas, na verdade, os assassinos são muçulmanos cuja específica leitura da religião motivou os massacres.

    Há no mundo muçulmano uma enorme diversidade de posições, de Osama bin Laden com sua prole política –os fanáticos do atual califado– até intelectuais muçulmanos reformistas e/ou "relapsos". Os perpetradores são uma ínfima minoria.

    Mas não podemos negar que há um problema. O caráter islâmico dos assassinos de Paris é inegável. Será o islã mais violento do que outras fés, um viés que o torna incompatível com a democracia à ocidental?

    A resposta é "não, porém...". A maioria dos muçulmanos rejeita o terrorismo, buscando um meio termo entre sua religião e a convivência na democracia. Mesmo assim o Alcorão propõe um ideal de sociedade diferente da democracia advinda do iluminismo: não a soberania do povo e a autodeterminação da nação, mas a soberania de Deus e Seu governo.

    Nisto, contudo, o islã pouco difere do cristianismo e do judaísmo. A solução para o dilema também será análoga: encontrar na sua teologia "jeitos" que permitam o casamento com a modernidade. A palavra de Deus não é mais lida literalmente, mas simbolicamente. Eventualmente tal solução acomodará também a maioria muçulmana.

    Como no caso cristão e judaico, encontram-se também entre os muçulmanos os que rejeitam a modernidade. Alguns se afastam do mundo "corrupto". Outros tentam explodi-lo. Terroristas não são psicopatas que matam por matar. São pessoas que usam a razão a serviço de um ideal paradisíaco que mergulhou num totalitarismo mortífero.

    A analogia é menos com o PCC ou nazistas do que com Mao Tse-tung ou Che Guevara: idealistas portadores de visão que se torna pesadelo. Talvez seja possível derrotar militarmente o Estado Islâmico e os que nele se inspiram. Mas enquanto o ideal vive, novos seguidores surgirão.

    E não é possível extirpar o ideal pelo frio "realismo" baseado em êxito econômico, consumismo e prestígio social, a "vida boa" que o ocidental propõe. O ser humano não vive apenas de pão.

    Nem é a falta de pão que turbina o terrorismo jihadista, por mais que colonização e imperialismo tenham seu papel na sua gênese. Como foi o caso dos bolcheviques, os que hoje se enquadram no jihadismo abraçam as soluções erradas, mas fazem-no em resposta a perguntas bem reais.

    Pode-se temer agora entre os europeus uma reação xenófoba, o que jogaria mais jovens desiludidos nos braços da jihad. Só uma outra ideologia pode satisfazer o buraco que o jihadismo preenche.

    A não ser que a sociedade desenvolva um ideal que satisfaça desejos de inclusão, dignidade e transcendência embutidos em todos, ideologias com alas violentas continuarão preenchendo o vácuo.

    Hoje temos pela primeira vez amplas diásporas muçulmanas no Ocidente. As reações, tanto no âmbito da sociedade "anfitriã" quanto na comunidade muçulmana, são diversas. Pode-se esperar dos recém-chegados uma dose de adaptação, mas nós ocidentais não podemos negar nossa responsabilidade histórica. A alternativa, um choque de civilizações, colocaria em perigo nosso futuro coletivo.

    PETER DEMANT, 64, é professor de história e relações internacionais na USP e autor de "O Mundo Muçulmano" (ed. Contexto, 2010)

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