• Opinião

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    Ulisses Razzante Vaccari

    Iluminismo à brasileira

    28/11/2015 02h00

    Vivemos, nos últimos tempos, no Brasil uma espécie de Iluminismo. Aos poucos, a sociedade brasileira começa a tomar consciência dos desmandos da classe política e econômica, torna-se intolerante com a corrupção e clama cada vez mais pelo bom funcionamento da justiça.

    Entre outras coisas, o jeitinho brasileiro, antes celebrado como marca característica do povo brasileiro, já não é visto com bons olhos, mas como uma herança nefasta a ser erradicada.

    Esse clamor pela moralidade, entretanto, muitas vezes vem acompanhado por um certo moralismo, no mau sentido da palavra. Junto com a reivindicação por justiça e por mais moralidade na política, cresce o sentimento de desconfiança em relação ao outro, a vigilância, bem como a intolerância da qual as redes sociais dão testemunho.

    A perseguição incondicional do ideal de uma sociedade justa e moral deve ser acompanhada de perto para que não se transforme em seu oposto, numa sociedade desconfiada, intolerante e vigilante, baseada no ódio. A história, afinal, nos mostra como é tênue a linha que separa o sentimento moral do moralismo, o clamor por justiça, do ódio da vingança.

    Ao estudarmos o Iluminismo europeu, é chocante constatar como um movimento nascido em prol da autonomia do homem e da razão desandou num ato de violência, marcado exatamente pelo moralismo e pela intolerância. A Revolução Francesa, espécie de efeito desse movimento, acabou por transformar o lema liberdade, igualdade e fraternidade numa matança encabeçada por Robespierre, um dos seus ideólogos mais aguerridos.

    Nascido como um movimento legítimo que clamava pela libertação das classes oprimidas, o Iluminismo, aos poucos, transformou-se em ideologia. Tornou-se uma busca incondicional e obsessiva pelo homem perfeito, destituído de crenças e de preconceitos, inteiramente racional e absolutamente autônomo, deixando para trás as causas pelas quais surgiu pela primeira vez: o inconformismo político e a indignação diante dos abusos da nobreza.

    De uma hora para outra, o que era um clamor por racionalidade e por autonomia transformou-se numa busca irracional por um ideal que extrapolava os reais motivos de todo aquele período: o de uma sociedade perfeita, constituída de homens perfeitos.

    Desnecessário dizer que a ideologia do nazismo se nutriu dessa mesma essência. Embora os tempos e as pessoas fossem outros, o sentimento de purificação do homem e da raça era o mesmo.
    Theodor Adorno foi o primeiro, na história da cultura, a chamar a atenção para o "mito do iluminismo".

    O filósofo procurou pensar como essa busca desenfreada pela racionalidade absoluta conduz, ao fim e ao cabo, sempre a uma forma renovada do mito ou a uma nova forma de mitologia: a mitologia da racionalidade pura, da moralidade absoluta, em nome da qual a humanidade, por fim, chegou à barbárie e ao holocausto.

    Nas ruas das cidades brasileiras, vemos um crescente sentimento de intolerância entre os diversos grupos que, cada qual à sua maneira, clamam por mais justiça e por mais direitos. Nas manifestações Brasil afora, muitos são os relatos de discussões violentas e mesmo agressões entre os diferentes grupos partidários, uns defendendo mais transparência na política e outros, mais justiça social.

    O que deve ficar claro, em todo caso, é que, quando a discussão sai do plano da argumentação e da discussão e se torna violência e agressão é porque as coisas não estão claras o suficiente. A bem dizer, é porque reina a mais obscura treva, contra a qual se opõe toda forma de iluminismo.

    ULISSES RAZZANTE VACCARI é professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina

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