A anunciada demissão de um professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) por, supostamente, expender uma opinião racista, a propósito das cotas nas universidades, sob a pressão de um coletivo racista-hidrófobo autointitulado Negrada é um novo degrau no descenso das relações acadêmicas na universidade pública brasileira.
E março deste ano, pessoas do Negrada invadiram a sala de aula do professor. Usando máscaras e de punho esquerdo levantado. Após pouco mais de um minuto de silêncio, fizeram uma fala uníssona. Referiram-se a Palmares, "povo negro unido", luta, morte e a um navio negreiro trazendo o "rei Nagô", "salve negrada", "favela chegou", culminando com "cheio de negros, pra tocar o terror". Com evidente constrangimento dos alunos, inclusive de um negro.
A postura ameaçadora e a despropositada violência anunciada fazem parte deste tipo de movimento. Eles se caracterizam pelo seu desinteresse pelo debate, preferem as catarses identitárias e os mantras, assim como pelo maniqueísmo e as associações forçadas. A história mitificada faz parte do seu receituário, variando, de acordo com as necessidades, do vitimismo à heroificação. O "rei Nagô" que lidera o "navio negreiro" é sintomático. São todos "nobres", ainda que massacrados.
Em vídeo explicando a polêmica, ocorrida em fins de 2014, o professor não atribui à cor ou "raça" atributos negativos, nem se propõe que sejam previamente descartados ou discriminados. Os argumentos se referem às condições sociais e a impactos supostamente indeléveis nos indivíduos, cultural e fisicamente, na infância. Pode-se dele discordar, achar uma análise linear ou uma postura conservadora. Mas, certamente, não é racismo.
Não deixa de ser curioso que vários dos argumentos do professor sejam mobilizados pelos que defendem as cotas: 1) que os pobres são quase todos negros; 2) que, por isso, sendo pobres e negros, e em condições precárias de vida e formação, não podem concorrer com os brancos em igualdades de condições; 3) que entre as condições da desigualdade está a falta de "capital cultural", tida como irreversível no ensino básico.
No parco debate sobre o assunto, um comentário numa rede social chama a atenção. Dentre outros os muitos adjetivos assacados contra os que questionaram a demissão –falta de inteligência e humanidade, egoísmo, egocentrismo–, um é especial: a falta de "empatia". Empatia para com os negros, certamente, "subtraídos em direitos". Empatia, do grego "empátheia", paixão, é o viés emocional, irracional, como compreensão e ação.
Demite-se, pois, por empatia. Ou por antipatia, a face negativa da empatia. Contratar-se-ia também por empatia, ou por simpatia, sua face risonha? Empatia à cor, à "raça", seguindo o fio de corte em pauta? Em especial quando se alastram as cotas raciais para concursos públicos docentes nas universidades públicas. Aí já retirados, óbvio, os paliativos de renda. Vantagens para doutores que, após três graus universitários, ainda carecem delas.
Vêm-nos à memória uma entrevista da antropóloga Yeda Pessoa de Castro à Revista de História da Biblioteca Nacional, em maio de 2015. Nela a professora deu o seguinte depoimento: "Há um tempo, fiz parte de uma banca examinadora que tinha duas candidatas, uma que não era negra e uma negra, e a segunda fez a opção de entrar pelas cotas. Só que o discurso dessa candidata foi pífio e o trabalho que ela escreveu era de uma pessoa quase analfabeta. Quem passou? Ela."
Reproduzimos o trecho para que não haja dúvidas. Ingênuo que somos, cremos que aquilo grande polêmica. E mesmo medidas por parte de autoridades do Executivo ou do Judiciário. Apurar-se-ia a improvável leviandade da entrevistada ou da revista, ou o processo viciado do concurso. Pois nada ocorreu. E o que leva uma banca de intelectuais abalizados a cometer tal patranha, se não a "empatia", a dívida com os subtraídos em direitos, e o temor em arrostá-los?
Um caso peculiar? Ora, se foi aprovada uma "quase analfabeta", que dirá diferenças menores entre candidatos de cores diferentes. Como se estranhar que um professor "branco" seja demitido por uma frase controversa? A "empatia" se impõe. Até porque está fincada no governo e, cada vez mais, no Estado, que impõe, antes mesmo e junto com o Negrada, sua lógica. O rito sumário da UFES, sob a pressão do Negrada, talvez com o aval do MEC, não é um raio em céu azul.
E como será a Universidade Pública daqui a décadas de "empatia", orientando contratações e sob o tacão do "AI-5 racial", e outros que se fizerem valer pelo mesmo método? Como ficará sua qualidade, quando os critérios para nela entrar e permanecer for não a qualidade acadêmica, mas a "empatia" com o que quer que seja? Como atuarão professores sob a ameaça de grupelhos e sob a suspeita de qualquer frase por eles mal recebida?
WLAMIR SILVA, 54, doutor em história pela UFRJ, professor da Universidade Federal de São João del-Rei
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