• Opinião

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    Wilmar R. D

    A droga da USP

    09/12/2015 02h00

    Uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo cassou todas as liminares de primeira instância que obrigavam a USP a fornecer fosfoetanolamina a pacientes com câncer.

    Trata-se de uma vitória da "diplomacia" da Universidade de São Paulo (USP), e não apenas dos procuradores do Estado, no espaço jurídico, uma vez que a Universidade não descansou até articular as forças políticas necessárias para obter todo respaldo administrativo-burocrático e, agora, jurídico, para sua recusa a atender às ordens judiciais

    No campo burocrático, a USP já obtivera a "solidariedade" da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Uma "nota técnica" da Superintendência de Medicamentos e Produtos Biológicos (Sumed) da Anvisa, de fevereiro de 2015, recentemente reforçada pelo Procurador Geral da Justiça em nota a todos os membros do Ministério Público, afirma que "a comercialização, bem como a exposição do produto fosfoetanolamina, estaria (sic) em desacordo ao que prevê a Lei nº. 6.360/76, que em seu artigo 12 assim dispõe: "...nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado..."".

    A USP, e a própria Anvisa, tem abusado do argumento de que não se pode fornecer ou comercializar medicamento sem atender a todos os protocolos do órgão de vigilância, que garantam a "segurança" e a "eficácia" do seu uso. O argumento é falacioso. Em primeiro lugar, porque basta ler bulas de remédios adotados como "primeira linha" no tratamento de diversas doenças para se encontrar expressões como "não se sabe como o 'X' age no organismo; acredita-se que...".

    Ora, se há algo que evidencia uma eficácia duvidosa e nenhuma segurança no uso de um medicamento é esse tipo de afirmação, que no entanto, está escrita com todas as letras na bulas de diversos fármacos defendidos, ou melhor, aprovados pela Anvisa.

    Em segundo lugar, a fosfoetanolamina não é, claramente, um medicamento; por seu mecanismo de ação –esse sim, bem conhecido e, até mesmo, amplamente divulgado pelos pesquisadores liderados pelo prof. Gilberto Chierice– a substância é um suplemento coadjuvante no tratamento do câncer.

    Do mesmo modo que se receita albumina, ácido fólico, selênio ou suplementos vitamínicos para pacientes em diversas situações, a fosfoetanolamina pode e deve ser ingerida como forma de auxiliar o organismo em seu combate a uma doença grave. Albumina, ácido fólico, complexo vitamínico e uma centena de outros produtos livremente comercializados em todo o país, não são medicamentos.

    O que "criminaliza" a fosfoetanolamina é que ela exige um sistema imunológico preservado, porque sua ação é apenas facilitadora ou estimuladora das defesas próprias do organismo para combater o câncer. Como um sistema imunológico preservado só é possível se o paciente não for submetido a nenhuma quimioterapia (porque esse tratamento convenciona destrói a capacidade do organismo de defender-se, ao mesmo tempo em que destrói células cancerígenas), a fosfotetanolamina é inimiga da poderosíssima indústria farmacêutica.

    Se uma única sessão de quimioterapia "básica" pode custar em torno de dez ou doze mil reais, o reforço da fosfoetanolamina como coadjuvante do sistema imunológico sai por menos de dez reais por um mês. Portanto, ninguém enriquecerá fabricando fosfoetanolamina, até porque, seu uso como auxiliar no tratamento de câncer foi patenteado pelo professor Chierice, exatamente para evitar que qualquer indústria queira ganhar dinheiro com isso.

    O esforço da USP, em lugar de se concentrar na recusa ao fornecimento do medicamento, fosse no sentido de buscar parcerias (mesmo governamentais, facilmente negociáveis em um caso como esse) para dar uma resposta às necessidades da população, mesmo que fosse para desenvolver os testes necessários ao atendimento dos protocolos da Anvisa, ela mereceria nosso respeito como instituição.

    Demonstraria, com isso, alto senso de responsabilidade social e respeito e integração com a comunidade brasileira que a mantém. Infelizmente, não foi esse o caminho escolhido pela USP. Como professor e pesquisador de uma universidade estadual paulista, envergonho-me de ter de chamar de colegas às pessoas que compõem a reitoria da USP.

    Meu filho mais velho sofreu de câncer. Por pouco menos de dois meses, por generosidade do Prof. Chierice, ele pode usufruir do tratamento com a fosfoetanolamina. Nesse meio tempo, um amigo ajuizara para ele uma ação e, também ele, ganhou uma liminar que obrigava a USP a fornecer-lhe a substância. A USP já estava em desobediência à ordem judicial há mais de dez dias, quando meu filho teve que ser internado (pois, até então, recebia tratamento em casa).

    Na última quarta-feira à noite, na cama do hospital, meu filho soube, por um noticiário de televisão, que o Tribunal de Justiça de São Paulo liberara a USP da sua obrigação com ele e com todos outros os que haviam obtido liminares favoráveis ao fornecimento da fosfoetanolamina. Menos de seis horas depois meu filho desistiu de lutar por sua vida, e nos deixou, inconsoláveis.

    Aos dirigentes burocratas da USP expresso meu mais profundo repúdio. Vocês decidiram favorecer a morte, onde havia esperança de vida.

    WILMAR R. D'ANGELIS, linguista, é professor no departamento de linguística da Unicamp

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