• Opinião

    Saturday, 04-May-2024 20:22:35 -03

    Marcos Alberto Rocha Gonçalves

    Conceito de família deve abranger todas as formas de relacionamento? Sim

    26/12/2015 02h00

    A LIBERDADE DO AFETO

    Desafiando os líricos lírios de Drummond, a inventividade legislativa brasileira, de obtusa prodigalidade nesse esquisitíssimo quadrante da nossa história, se fez novamente histriônica, desta vez na forma do projeto de lei 6.583/2013.

    Ele dispõe sobre o Estatuto da Família, aprovado em caráter conclusivo pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados.

    O conteúdo que compõe o projeto de lei fundamenta-se de forma central, segundo sua justificativa, na desconstrução do conceito de família, propugnando o fortalecimento dos laços formados pela união conjugal firmada entre o homem e a mulher a partir de uma série de enunciação de direitos.

    Assim, a regra proposta nada mais faz do que um arrombar de portas já abertas a um modelo muito bem delineado de enlace (muitas vezes nem tão) afetivo, garantindo a quem nele se enquadrar o desfrute da efetivação de amplo conjunto de direitos.

    O que há de novo no projeto é, paradoxalmente, sua marca mais conservadora, revelada pelo desnudamento de uma legislatura escancaradamente excludente.

    Trata-se, aliás, de movimento assustadoramente comum nos dias de hoje, como são exemplos o projeto de lei que pretende estabelecer o Dia do Orgulho Heterossexual e a proposta de emenda à Constituição, votada e aprovada na Câmara dos Deputados, que visa diminuir a maioridade penal de 18 para 16 anos em crimes graves.

    Nos limites da proposta do estatuto, como se fosse o arremate de um típico roteiro do teatro do absurdo, família passaria a ser somente a união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, excluindo-se, pela lei, tudo aquilo que não cabe no esquadro do projeto.

    Ao deixar de apresentar avanços teóricos e práticos em relação à efetivação de direitos daqueles que de fato encontram-se vulneráveis, o projeto apresenta em seu núcleo o intento último da exclusão, tentando domesticar as relações humanas a partir do afastamento de direitos.

    Ao trancafiar de volta no armário a liberdade de todos serem sujeitos de suas próprias histórias, o legislador brasileiro faz pouco caso do sentido próprio do ordenamento jurídico constitucional estabelecido em ambiente democrático.

    Os sentimentos e laços afetivos que formam os sujeitos não cabem em uma lei. Lembrando um famoso poema de Drummond, "Quadrilha", não há como determinar que Lili, por ter-se casado com J. Pinto Fernandes, tenha, no âmbito familiar, direitos distintos a Maria, que ficou para tia.

    Ao eventualmente se constituir o Estatuto da Família em lei, vivenciaremos uma vez mais o confronto entre a materialidade social e um discurso hegemônico totalitário, porque redutor de complexidades.

    Esperamos que a tentativa do legislador de segregar direitos se transforme na reafirmação do acolhimento constitucional de todas as formas de afeto.

    MARCOS ALBERTO ROCHA GONÇALVES, 32, é professor de direito civil da Pontifícia Universidade Católica - PUC-PR e sócio da Fachin Advogados Associados

    *

    PARTICIPAÇÃO

    Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br.

    Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024