A proposta beira o absurdo. O Ministério da Educação, por meio do documento intitulado Base Nacional Comum Curricular, elimina a obrigatoriedade do estudo da literatura portuguesa, como se, até hoje, ela tivesse sido desnecessária à educação dos jovens que conseguiram terminar o ensino médio.
Desde a primeira proposta da reforma ortográfica agora vigente, o governo brasileiro argumentava a favor da padronização linguística, dadas as afinidades culturais e a unidade em torno da língua dos países de fala e escrita portuguesa.
A lusofonia, afinal. Falamos o mesmo idioma? Então somos irmãos. Linguistas, literatos, gramáticos, historiadores, intelectuais em geral não foram convidados ao debate. E hoje ocorre o mesmo com a discussão da base curricular. Quem elaborou as atuais propostas? Ninguém sabe, ninguém viu.
Carvall | ||
O projeto do MEC para o ensino da literatura nesse segmento apresenta inovações, já adotadas por alguns colégios menos formalistas, como a inversão temporal da sequência da história literária: os alunos do primeiro ano leriam autores contemporâneos e, nas séries seguintes, mais maduros e preparados, teriam contato com obras de períodos anteriores.
Também louvável é a ênfase ao estudo da contribuição dos países africanos de língua portuguesa e à cultura dos povos indígenas.
Como, porém, apagar Europa e Portugal de nossas origens? Tirando do mapa? Surgiram artigos, nem todos contundentes, sobre a base curricular, mais focados, porém, na área de história –e um tantinho na linguagem, na norma dita padrão e na gramática. O resto é silêncio.
É difícil imaginar uma justificativa para a discriminação da cultura europeia e da literatura portuguesa. Será que, mais uma vez, a seleção de conteúdos foi contaminada por um viés político e ideológico anacrônico?
Já que Portugal teria sido uma metrópole colonialista europeia que explorou as riquezas de suas colônias e escravizou populações negras e indígenas na América e na África, agora seria o momento de dar voz à cultura dos oprimidos, em detrimento da Europa elitista e opressora.
Escritores lúcidos e críticos ao processo político colonizador lusitano, como os portugueses José Saramago e António Lobo Antunes, não poderiam ser estudados por não serem africanos, tal qual o moçambicano Mia Couto.
A Base Nacional Comum Curricular cobre apenas um rol mínimo de informações e conceitos obrigatórios, a serem complementados com outros tantos conteúdos de cunho eletivo ou facultativo. Mas deveria o estudo da literatura portuguesa ser opcional? Camões e Fernando Pessoa, sem falar do Padre Antônio Vieira e de Eça de Queiroz, dependem agora do gosto e/ou da escolha de colégios ou professores?
Como compreender a cultura popular nordestina, suas canções, seus repentes, seus cantos de aboiar, sua literatura de cordel, sem reconhecer a presença da literatura medieval da Península Ibérica, em particular as cantigas trovadorescas e as novelas de cavalaria?
E "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Melo Neto, e "Auto da Compadecida", de Ariano Suassuna, nada devem ao teatro humanista português de um Gil Vicente? Fugir ao diálogo Brasil/Portugal é negar origens e contextos produtivos.
A quem interessa mudar tanto o programa de literatura? Em que buraco negro estão as milhares de sugestões feitas por quem tem conhecimento da base curricular?
O que fazer com as toneladas de livros didáticos já oferecidas anteriormente pelo próprio MEC às escolas públicas e/ou compradas pelas famílias de alunos de escolas particulares? Como atualizar os professores que aprenderam literatura portuguesa, por vezes a duras custas?
Passaremos a ter melhores classificações nas avaliações internacionais sem a cultura europeia e a literatura portuguesa? Seremos mais finlandeses, talvez.
FLORA BENDER GARCIA é doutora em teoria literária e literatura comparada pela USP
JOSÉ RUY LOZANO é autor de livros didáticos e professor de produção textual do Instituto Sidarta
*
PARTICIPAÇÃO
Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.