• Opinião

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    Thiago Braz Jardim Oliveira

    A estratégia do deixa acontecer

    21/03/2016 02h00

    Neste mês de fevereiro, a notícia de que a Justiça italiana julgará brasileiros por crimes cometidos durante a ditadura militar voltou às páginas da imprensa nacional.

    Quatro brasileiros são acusados de envolvimento na morte de um cidadão de nacionalidade italiana, vítima da Operação Condor. Os coronéis João Osvaldo Leivas Job, Carlos Alberto Ponzi e Átila Rohrsetzer, e o delegado de polícia Marco Aurélio da Silva Reis teriam abduzido, em território brasileiro, o ítalo-argentino Lorenzo Ismael Viñas, e o teriam entregado às autoridades da Argentina, responsáveis pelo seu desaparecimento.

    O caso foi primeiro noticiado há pelo menos oito anos, com a divulgação de um processo penal na Itália envolvendo militares dos países do cone sul. Já em dezembro de 2007, a correspondente da BBC Brasil em Roma, Valquíria Rey, registrava que autoridades italianas pediam "a colaboração do governo do Brasil para interrogar e facilitar a extradição de brasileiros acusados de envolvimento na Operação Condor".

    Segundo a reportagem, o Procurador da República italiana junto ao Tribunal de Roma, Giancarlo Capaldo, explicou que "a Itália não quer passar por cima da soberania de nenhum país" e que "se forem abertos processos contra essas pessoas, ficaremos muito felizes que elas sejam julgadas em seus países de origem." A lista de brasileiros investigados chegou a incluir o ex-presidente brasileiro João Figueiredo, falecido em 1999, e excluído do processo por essa razão.

    Em princípio, a Itália, assim como qualquer outro país, não tem o direito de julgar crimes que o Estado brasileiro, por meio de seus agentes, teria cometido. Essa é uma regra das mais tradicionais do direito internacional: estados soberanos não podem julgar-se uns aos outros, nem mesmo indiretamente, mediante o julgamento de seus agentes. Admite, porém, exceções.

    Uma delas é a que parece motivar os atos da Justiça italiana. É que o direito do Brasil de se opor a que um Estado estrangeiro, que é o estado de nacionalidade da pessoa vítima dos agentes brasileiros, se arrogue o papel de juiz do caso depende de o Brasil exercer sua jurisdição penal contra esses agentes. A Justiça brasileira, contudo, não parece interessada em julgar os quatro militares brasileiros, ainda que os crimes pelos quais são acusados tenham ocorrido na década de 80, após o período coberto pela Lei da Anistia de 1979.

    Não deveria surpreender, portanto, que o Brasil, que não parece querer exercer seu poder de jurisdição, não se tenha oposto ao julgamento do caso pela Itália. O judiciário, inclusive, aceitou pedidos da contraparte italiana (por carta rogatória) para que notificasse os militares brasileiros de que estão sendo acusados na Itália por crimes cometidos no Brasil. A situação, contudo, é no mínimo curiosa, porque as autoridades brasileiras poderão se achar em uma situação desconfortável.

    Por um lado, o Brasil não tem dado mostras de que intenciona julgar os seus militares e, por isso mesmo, não pode reclamar que um magistrado estrangeiro, italiano, julgue atos imputáveis ao Governo brasileiro. No plano internacional, porém, pode ser razão de algum embaraço uma declaração como a de Capaldo, procurador italiano, reavivada pela imprensa há algumas semanas: "O Brasil foi parte operativa do Plano Condor... Não é possível que as autoridades brasileiras não fossem cúmplice do que estava acontecendo".

    O que dizer, então, de uma sentença judicial estrangeira, ato formal de um Estado estrangeiro, com o mesmo teor? Vale lembrar, contudo, que o Estado brasileiro reconhece sua responsabilidade pelos crimes da ditadura, em particular pelo desaparecimento do cidadão italiano Lorenzo Viñas (desde 2005, com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos). Tanto que indenizou a família da vítima, de modo que não haverá verdadeira afronta à soberania nacional se, no plano da responsabilização penal individual, apenas reiterar-se a condenação dos atos do regime militar pelos quais o Estado brasileiro já se responsabilizou.

    Por outro lado, a Justiça brasileira, apesar de cooperar em alguma medida com a italiana (por exemplo, executando as cartas rogatórias), não poderá em hipótese alguma extraditar os réus brasileiros para a Itália. Nem mesmo em caso de sua condenação pelos tribunais daquele país. A Constituição Federal veda a extradição de nacionais (salvo exceções, que aqui não se aplicam).

    Portanto, o Brasil corre o risco de se submeter a uma nova censura, não propriamente nova: a de que o Estado, apesar de não invocar sua imunidade da jurisdição estrangeira em favor de seus ex-agentes, não está comprometido com a punição deles. Faz que não se opõe ao julgamento deles por um Estado estrangeiro, permite que o processo avance e se prolongue no tempo, mas inevitavelmente negará a extradição necessária para que cumpram pena em caso de condenação.

    Uma saída natural para essa incômoda situação ocorrerá caso a morte alcance os acusados, já em idade avançada, antes da condenação. Então o fato de o Brasil não se opor a que um Estado estrangeiro se arvorasse em juiz dos atos praticados pelo Governo brasileiro, expondo-o a uma censura indireta por crimes da ditadura, terá sido o menor dos males.

    Isso porque, certamente, a crítica seria maior caso o Brasil defendesse a imunidade dos militares brasileiros diante da jurisdição penal italiana, para, afinal, não julgá-los no país. Dessa crítica foi vítima, por exemplo, o Chile, que invocou a sua imunidade de Estado diante dos tribunais britânicos em favor do ex-general Pinochet. O mesmo Chile, no entanto, se comprometia a julgar o ex-general em tribunais chilenos.

    [As opiniões emitidas no texto são de inteira responsabilidade do autor, não coincidindo necessariamente com posições do Ministério das Relações Exteriores.]

    THIAGO BRAZ JARDIM OLIVEIRA é diplomata de carreira, mestre e doutorando em direito internacional pela Universidade de Genebra, onde foi professor assistente de 2011 a 2015

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