Vivemos um tempo marcado pela intolerância religiosa, pela xenofobia, pela homofobia, pelos racismos de todo tipo, pelo machismo e por conservadorismos de toda espécie.
Vivemos hoje no Brasil uma fase de acirramento de rivalidades ideológicas que podem acabar nos conduzindo à exclusão, à marginalização, à negação da liberdade de comunidades inteiras.
Nosso dever é conclamar para a sensatez. Nosso dever é ressaltar a importância da convivência pacífica e respeitosa entre as diferenças, e estimular as atitudes de respeito mútuo. Nosso dever é defender a democracia e o Estado de direito.
É parte deste contexto assunção de uma posição firme contra a intolerância religiosa que tem tomado proporções alarmantes entre nós. Especialmente quando acontece em um país que tem procurado se distinguir pela alegria e possibilidade de construir uma convivência harmoniosa, fundada na justiça social.
A religião, tal como a ciência, tanto pode ser usada para oprimir o ser humano quanto para libertá-lo. A religião que liberta é a religião que expande a esfera do humano, tanto no rumo da redenção espiritual quanto no rumo de uma vida voltada para tornar o mundo um lugar melhor.
As religiões nasceram para unir as pessoas num só impulso de transcendência, não podem se permitir ser instrumento de dominação política ou econômica. Quem se aproxima do Deus em que acredita deve necessariamente aproximar-se também dos seus semelhantes. Para ajudar, nunca para explorar. Para salvar, nunca para oprimir.
A convivência harmoniosa entre as religiões deve se basear no que as une: todas buscam explicações divinas para o sentido da vida. Todas as culturas convergem quando dialogam com o divino, cada uma de acordo com sua própria história e sua própria linguagem. Todas elas buscam explicações para o início e o fim dos tempos.
Por tudo isso, temos que respeitar os rituais alheios e respeitar neles o mesmo impulso de fé e de amor ao próximo que alimenta a crença de cada um.
Defendemos não apenas o direito de cultuar sua fé religiosa, mas o direito de fazê-lo publicamente, sob a proteção de um Estado imparcial que assegure a todos os cultos o mesmo respeito e o mesmo espaço.
O mesmo direito de estudar e ensinar publicamente as suas tradições, e também de poder acolher livremente todos os que livremente forem ao seu encontro.
As religiões de matriz africana são bons exemplos do que digo, testemunhos vivo dessa ação, exemplo para uma democracia das crenças no Brasil. Exemplo de uma imensa riqueza espiritual e única. E de uma capacidade enorme de diálogo com outras culturas.
Ainda não conseguimos apagar as marcas da escravidão em nós, algo facilmente constatável em nosso cotidiano, em nossa maneira de ser e em nossa organização social. Grande parte destas marcas, é bom que se diga, se naturalizam culturalmente.
Mesmo assim, a sórdida experiência escravista não conseguiu apagar o brilho dos saberes que os negros trouxeram da África. As casas de santo são hoje símbolos de nossa nacionalidade.
Além de constituírem sítios sagrados para amplas parcelas da população brasileira, os terreiros de candomblé mais antigos e tradicionais constituem marcos urbanos e paisagísticos e importantes testemunhos históricos da resistência cultural dos povos de origem africana e de suas lutas.
Nas condições adversas da escravidão, construir o espaço religioso e de transmissão cultural lhes era negado na maioria das vezes.
Os terreiros de candomblé são, ainda, lugares privilegiados de transmissão de conhecimentos tradicionais religiosos e medicinais, de produção cultural, de preservação de memórias ancestrais e de preservação das línguas africanas que já não têm uso cotidiano.
Lembremos também que o reconhecimento de terreiros de candomblé como patrimônio cultural não foi um processo fácil no Brasil.
Num tempo em que vemos aumentar impulsos irracionais de exclusão, de marginalização, de negação da liberdade do outro, nada mais importante do que prestigiar iniciativas de afirmação das diferenças, da convivência pacífica e respeitosa com os contrários, do gesto de respeito com que uma comunidade saúda e homenageia os valores de outra.
Iniciativas essenciais para a formação de uma mentalidade que tenha a liberdade, a autodeterminação e a justiça social como ideais fundadores de uma sociedade plural como a nossa.
JUCA FERREIRA é sociólogo e ministro de Estado da Cultura
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