• Opinião

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    Ricardo Antunes

    O pântano chegou ao volume morto

    15/05/2016 02h00

    Depois do ato catártico do impeachment sob o comando de Eduardo Cunha na Câmara dos Deputados, agora foi a vez do Senado. Com menos alusão a Deus, famílias, mulheres, filhinhos, maridos probos, bandeiras e fogos de artifício, o Senado conduzido por Renan Calheiros começou mais sóbrio no embuste.

    Dilma foi afastada e Temer empossado, sem o peso de Cunha, pois o dito cujo foi escanteado depois de fazer o jogo sujo crucial.

    Não importa se não há substância real e legal para o ato, pois a oposição parlamentar decidiu, em outubro de 2014, que a deposição de Dilma era o único caminho para atingir o poder que não conseguiu pela via eleitoral.

    E, como o tucanato, verdadeiro construtor desse processo, não poderia se beneficiar imediatamente, viu no velho PMDB o tampão capaz de viabilizar sua ação. Percebeu que hoje "o mar não está para peixe", como se dizia antigamente. Ou melhor, não está para tucano.

    Não se trata aqui de defender o governo Dilma, que provavelmente seria derrotado em 2018, tal foi o tamanho de seus fracassos. Numa sucessão de equívocos, o último foi incentivar Waldir Maranhão a deflagrar uma ação na calada da noite, esquecendo-se de que, ao amanhecer, seria destroçado pelos construtores do impeachment.

    Talvez seja bom recordar que a "genial" engenharia política criada pelo lulismo é que vem devorando tanto o seu criador quanto a sua criatura. De Eliseu a Picciani, de Meirelles a Geddel, de Kassab ao segundo Sarney, só faltou mesmo o Pauderney no "novo" ministério de Temer, composto em boa dose por velhos ministros de Lula e Dilma, muitos dos quais citados na Lava Jato.

    Sem nenhuma mulher, nenhuma negra ou negro, ao menos até o dia da posse, na mais clara (com o perdão pelo trocadilho) fotografia da classe que domina o país.

    E outros tantos são figuras da carcomida política brasileira, oligárquica e patriarcal, sempre em plena sintonia com o capital. Melhor seria dizer, com os capitais, como o agronegócio, as finanças, os barões da indústria etc. Todos, sem exceção, até anteontem encantados com as benesses do lulismo que agora sepultam impiedosamente.

    O STF (Supremo Tribunal Federal) vive também momento singularíssimo. Oscila entre a judicialização da política e a politização da justiça, impulsionado por vozes que esbravejam antecipadamente em cada ação contra o governo, quando o razoável seria um mínimo de discrição.

    E que manteve Cunha para deslanchar o impeachment, garantir seu trâmite e aprovação, para depois defenestrá-lo. Para os mortais a pergunta é: se o dito cujo é tão malévolo, não é no mínimo estranho que a alta Corte o tenha preservado exatamente em um momento crucial?

    Pode-se dizer que o STF está atolado de trabalho e que a toga quase nem consegue descansar. Mas aí vem outra indagação: será que pode existir pauta mais importante do que cuidar da legalidade e eticidade de um processo que visa destituir a Presidência da República?

    Não é difícil concluir que o governo Temer nasce em falhanço total. Sem legitimidade, carregando a sina de golpista, vai encontrar um descontentamento profundo.

    Costuma-se dizer que as esquerdas são antidemocráticas. Mas quem rasga mesmo a Constituição no Brasil é sempre a direita. O pântano chegou ao seu volume morto.

    RICARDO ANTUNES, 63, é professor titular de sociologia da Unicamp. Publicou, entre outros, o livro "A Desertificação Neoliberal no Brasil" (ed. Autores Associados)

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