• Opinião

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    Rogério Cezar de Cerqueira Leite

    A donzela de Orléans e as pedaladas

    17/06/2016 02h00

    Uma das cenas mais aterradoras da Guerra dos Cem Anos ocorreu em 1431, quando uma donzela de 19 anos foi colocada em uma pilha de toras de madeira e queimada viva.

    Aquela foi a segunda vez em que esteve presa. O interrogatório foi longo, quase um ano, e a principal queixa de heresia foi a de se vestir como homem. Ela era guerreira, usava em batalhas armadura de metal, em vez de saia e babados.

    Nos quartéis, seria atacada sexualmente se usasse decotes, pois os relatos da época dizem que esse era o comportamento usual de soldados. Demorou quase cinco séculos para que a história reconhecesse Joana d'Arc como sua maior heroína. À época não havia internet.

    O pecado da presidente afastada Dilma Rousseff foi aprovar umas pedaladas, ou seja, deixar de pagar os bancos oficiais, o que governos anteriores faziam regularmente, inclusive o de Fernando Henrique Cardoso.

    E agora o governo dos inquisidores anuncia uma superpedalada no BNDES, R$ 100 bilhões. Só há uma diferença: ao invés de atrasar o repasse, exige pagamentos adiantados de parte da dívida do banco com o Tesouro. Imagine a situação: alguém compra uma geladeira, por exemplo, e o vendedor exige pagamento adiantado de mensalidades.

    É bom que se diga que sangrar o BNDES, ferramenta essencial para a retomada do desenvolvimento econômico e social do país, é a medida mais contraditória que se poderia imaginar, principalmente no estado recessivo no qual o Brasil se encontra, o que até economistas são capazes de perceber.

    Pois é, Dilma não usava roupas masculinas, mas atrasou pagamentos aos bancos do próprio governo. A desculpa para jogar Dilma na fogueira é tão estapafúrdia quanto aquela heresia usada contra Joana d'Arc, e tão medieval quanto.

    A donzela de Orléans pegou em armas para livrar seu país do jugo dos ingleses e do entreguismo dos dirigentes da província de Borgonha, aliados na luta contra o legítimo herdeiro do trono da França. Foi um episódio nacionalista pela recuperação da soberania da conflagrada nação.

    Vai ser difícil apagar a história também aqui no Brasil. Já está escrito o que foi feito pela educação: 23 novas universidades federais, 173 novos campi universitários, 422 novas escolas técnicas, o ProUni, o Fies, a capacitação de 200 mil professores da educação básica, entre outras ações.

    O rompimento dos compromissos com a educação e a saúde, a desvinculação de percentuais do orçamento, propostas do governo interino, não eliminarão o que foi feito. O Bolsa Família é o mais bem-sucedido programa de combate à pobreza e ao analfabetismo do mundo, e é assim reconhecido universalmente.

    O aumento do salário mínimo e a quase eliminação da pobreza, com 30 milhões escapando da miséria, são resultados que não serão esquecidos pela posteridade, apesar da eficiente propaganda da Globo.

    Podem caçar o Lula, podem caçar a Dilma, podem desbaratar o PT, mas o futuro lhes fará justiça. Não será necessário esperar 500 anos. O futuro não mais pertencerá às oligarquias. O futuro pertence ao homem do povo, ao cidadão comum.

    ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 84, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da Folha

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