• Opinião

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    ROBERTO FEITH

    O público e o privado

    19/06/2016 02h00

    Numa conversa recente, um amigo de longa data comentou que a senadora Kátia Abreu subiu no seu conceito por, ao contrário de outros ministros, ter ficado ao lado de Dilma Rousseff até o dia em que esta foi afastada da Presidência.

    A demonstração de lealdade seria ainda mais notável, segundo meu amigo, por transcender diferenças ideológicas. Uma representante da bancada ruralista se colocou, até o último instante, ao lado de uma presidente que buscava apoio do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

    Esse mesmo amigo observou que, em contrapartida, despreza Sérgio Machado pela deslealdade demonstrada ao secretamente gravar conversas com correligionários de longa data, com expressa intenção de entregar o resultado à Procuradoria-Geral da República e obter um acordo de delação. Para meu amigo, a traição de Machado é mais condenável que a intenção dos senadores gravados de abortar a Operação Lava Jato.

    Nos dois comentários está implícito um valor que permeia há séculos a alma brasileira: a prioridade atribuída ao universo do privado, em comparação ao público. Esse fenômeno é analisado com brilho pelo antropólogo Roberto DaMatta no seu clássico, "A Casa e a Rua".

    O combate entre valores públicos e privados perpassa o nosso atribulado noticiário, às vezes de forma inesperada. Vemos José Sarney protestar, indignado, que tratava Sérgio Machado como um filho. Como poderia esse quase filho revelar que pagou quase R$ 20 milhões de propina ao pai postiço?

    Lemos que Delcídio do Amaral reclamou que senadores ajudados por ele em inúmeras ocasiões votaram pela sua cassação. Ouvimos Lula dizer que Rodrigo Janot, nomeado pelo governo petista para a Procuradoria-Geral da República, não mostrou a justa gratidão ao investigar denúncias contra membros do partido.

    Três instâncias de inconformidade com violações de laços de compadrio e amizade, cometidas em suposta defesa do interesse público.

    Também tivemos casos nos quais o peso prioritário que atribuímos aos laços familiares funcionou inadvertidamente a favor do interesse público. Personagens estratégicos como Paulo Roberto Costa e Sérgio Machado, que resistiam tenazmente aos interrogatórios, optaram pela delação premiada só quando os filhos passaram a ser investigados. Calejados assaltantes dos cofres públicos, acostumados a negar e acobertar, entregaram tudo e todos quando a pressão chegou à família.

    A prioridade dada ao interesse pessoal, em detrimento do público, não é prática exclusiva dos políticos ou dos envolvidos em corrupção. Essa dinâmica está presente em boa parte da vida brasileira.

    E o alcance do que consideramos pessoal, do que priorizamos em detrimento de qualquer outro valor, tampouco se limita ao círculo íntimo. Na medida em que crescem o fisiologismo e o clientelismo no tecido social do país, esse raciocínio vem sendo aplicado a um raio mais amplo, abrangendo empresas, sindicatos, igrejas e corporações.

    Para endireitar nosso país, mergulhado na maior crise política, econômica e moral desde a ditadura, o sucesso da Operação Lava Jato é condição necessária, porém insuficiente.

    Também será fundamental uma mudança profunda na forma como lidamos com o combate entre o que é do interesse público e o que é do particular.

    E não só nas leis, na política e na administração pública mas também na vida de cada um de nós.

    ROBERTO FEITH, 62, jornalista, foi fundador e diretor da editora Objetiva

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