• Opinião

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    Nelson Ascher

    O grande divórcio

    02/09/2016 02h00

    A segunda-feira ainda não acabou. A torcida do time derrotado continua sob efeito do placar de 61 a 20. Há abulia, depressão, raiva, violência, gente depredando o estádio etc.
    Só que, mais dia, menos dia, a terça-feira chega, e o torcedor mais transtornado descobre que suas economias não sumiram, sua mulher não o abandonou nem sua casa pegou fogo. A derrota simbólica foi terrível, mas foi simbólica.

    Não há setor da sociedade ao qual essa comparação se aplique melhor do que à intelectualidade, cuja adesão ao partido recém-demitido foi quase unânime. O que se vê nos universos real e virtual é intelectual histérico, apocalíptico e/ou em pânico a nos ameaçar com um amanhã tão sombrio quanto o prometido por seus pares britânicos aos compatriotas caso o Brexit triunfasse.

    No entanto, praticamente nenhum intelectual aqui perdeu ou perderá dinheiro, poder, influência por causa do impeachment. Seus lugares em universidades, jornais, editoras, shows e naquela rede de TV seguirão inalterados.

    Nem por isso a intelectualidade está segura. Não é que seus membros corram o risco de os camisas-negras do novo presidente ou a polícia secreta da República de Curitiba sequestrá-los no meio da noite e despachá-los para Guantánamo.

    Não. É que nesses 13 anos consumou-se um divórcio inédito entre eles e a maioria dos brasileiros, algo que se patenteou durante as recentes megamanifestações. Artistas, cantores, autores e jornalistas, como os que encabeçaram ou inspiraram as Diretas Já, foram para um lado chamando a população, que, sem qualquer grande personalidade, dirigiu-se majoritariamente para o sentido oposto.

    Nossa elite intelectual influencia cada vez menos as escolhas políticas dos concidadãos, para boa parte dos quais anda granjeando fama de áulica e servil. Será que ela ignora que um dos grandes tabus tácitos do país é não bajular o chefe, pelo menos não abertamente, em público?

    Por mais maravilhoso que um governo seja, ainda é um governo, e não cai bem intelectual elogiá-lo anos a fio, sem parar. Pode ser convicção 100% honesta, mas soa como bajulação. Além disso, nem mesmo o interesse pelo trabalho específico da casta em questão está em alta.

    É claro que a intelectualidade não precisa estar afinada com a população. Houve épocas em que muitos escritores e artistas se orgulhavam do contrário, de serem aristocratas do espírito, distantes da "turba rude". Acontece que, hoje, dez em dez intelectuais querem ou creem encarnar o papel de tribuno da plebe e até de psicanalista das massas. Aí, tal descompasso se torna preocupante.

    Vale a pena também perguntar quem ainda quer o apoio político do grupo. Afinal, muito do crescente insucesso do partido de partida resulta de ter se aproximado demais da intelectualidade, pois quanto mais esta o defende em público, menos eleitores ele atrai, já que o intelectual típico quer sempre ganhar integralmente toda e qualquer discussão, é insistente, nunca muda de assunto, não dá trégua e tem certeza de que fala em nome da história e dos anjos.

    Nada disso seduz um público que ou não é religioso ou sabe separar sua religião de sua política.

    E já que a pauta é como hostilizar eleitores e se livrar de seus votos, cabe observar que, não bastasse o governo demitido ter inundado cidades como São Paulo com o maior (e menos comentado) tsunami já visto de moradores de rua, seus defensores saem agora dia e noite perpetrando atos de depredação, vandalismo e até mesmo tirando desses sem-teto a última "zona de conforto"que lhes restava.

    Eis aí uma forma muito peculiar, especialmente numa democracia, de fazer amigos e influenciar pessoas.

    NELSON ASCHER, 58, é poeta e tradutor. Editou a "Revista USP", coordenou a Coleção Leste da Editora 34 e foi colunista da "Ilustrada" e editor do caderno "Folhetim", ambos da Folha

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