• Opinião

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    VANESSA ANDRADE

    Não confie em quem esconde o rosto

    14/09/2016 02h00

    A cena começa mais ou menos assim: fim de tarde, noite ameaçando, pais e mães voltam para suas casas depois de um dia de trabalho.

    Nessa hora, quando meu dia, seu dia, vai terminando, uns certos garotos vestidos de preto tomam as ruas, o seu caminho, interrompem a sua passagem.

    Foi assim comigo em fevereiro de 2014, época em que o Rio de Janeiro vivia um de seus auges em protestos.

    O telefone toca, corro para o hospital, entregam-me roupas sujas de sangue. Naquela hora, eu tive certeza, meu pai morreu.

    Bancos quebrados, pontos de ônibus destruídos, lixeiras que perdem sua função. Pânico, medo, tensão. Assim agem os "black blocs"; dois deles, inclusive, carregam também o título de assassinos.

    Mataram Santiago Andrade, o cinegrafista, o trabalhador, o homem honesto, meu pai. Mataram um ideal, mataram a vontade de nós, cidadãos de bem, nos posicionarmos contra ou a favor.

    Sabe por quê? Porque para esse grupo, que veste preto e usa máscara, não existe direito, não existe diálogo. Aliás, você já parou para pensar que eles usam máscaras e camisas pretas nos rostos para evitar uma conversa olho no olho?

    As coisas mudam depois que você bate de frente com um "black bloc", eu sei. Se você não chegou até eles, não se preocupe, eles chegarão até você. E será naquele momento em que você estará no seu direito legítimo de se manifestar, contra ou a favor, não importa. Isso não fará diferença na hora de arremessarem um rojão.

    Em quem atingir, o estrago será feito. Reze para que a vítima não seja você, alguém que você ama, ou melhor, que não seja ninguém.

    Foi assim, por sinal, que eles se referiram a Santiago na ocasião -um ninguém que estava no lugar errado na hora errada.

    Um Andrade passava na hora errada, o rojão encostou na perna e subiu, atingiu a cabeça em cheio. Eu mesma vi, todos viram, havia uma câmera, a mesma arma que Santiago usava, filmando.

    Por que ele não se defendeu? Uma vez ouvi isso de uma iniciante "black bloc". Já ouvi também que Santiago morreu porque quis, mas essa conclusão não entendi.
    Santiago morreu por uma causa que não tinha mais causa, por mostrar ao mundo a voz de um povo.

    Santiago era isso, povo, usava a câmera para revelar as injustiças, cobrar as impunidades, contava as histórias que ninguém via, ouvia, sonhava.
    Já os "black blocs", ah, deles posso falar com propriedade, de certa forma também sou vítima.

    É gente que não tem festa e aproveita para comer o bolo alheio. Esconde a cara porque possui vergonha do que se tornou. É minoria que não sabe escolher um lado, mas sabe escolher a vítima. O que não é difícil, vamos combinar, pois todos somos vítimas desse grupo.

    Ser "black bloc" é ser do contra -acredite, ele sempre será contra você, é da natureza dele. Tenho pena dos pais desses garotos. Devem ser bravos trabalhadores como você e eu. Como Santiago, como os pais dos assassinos de Santiago.

    Tenho um conselho: não confie em alguém que não confia a você o próprio rosto. Portanto, antes de ir à rua, tenha a certeza de estar segurando as mãos e olhando bem nos olhos de seus verdadeiros companheiros de luta.

    Os que carregaram pedras e rojões, ou aqueles que escondem os olhos por trás de máscaras duvidosas, também carregam um pouco do sangue da roupa de Santiago Andrade.
    Aquele que se acabou no chão feito um pacote flácido, agonizou no meio do passeio público e morreu na contramão atrapalhando o tráfego.

    VANESSA ANDRADE, 31, jornalista, é filha de Santiago Andrade, cinegrafista morto em fevereiro de 2014 após ser atingido na cabeça por um rojão enquanto cobria manifestação no Rio

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