• Opinião

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    André Sturm

    Cinema brasileiro não é só "Aquarius"

    15/09/2016 02h00

    Na tarde desta segunda (12), comissão do Ministério da Cultura escolheu o drama "Pequeno Segredo", de David Schurmann, para ser o representante brasileiro na disputa por uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Considerado o favorito da disputa, "Aquarius" saiu derrotado.

    Nos minutos seguintes ao anúncio, os ânimos já estavam inflamados nas redes sociais. Não chegou a ser surpresa, visto que qualquer passo do cinema nacional que envolva "Aquarius" é interpretado politicamente.

    O constrangimento criado em torno da escolha da comissão pode levar o cidadão desavisado ao erro. Por isso, compartilho aqui algumas informações.

    A presença internacional do cinema brasileiro nunca foi tão grande e diversificada. No último ano (de agosto de 2015 a julho de 2016), conquistamos algo inédito no país: filmes selecionados e premiados, em sequência, nos três principais festivais do mundo.

    Nosso cinema se destacou em Veneza ("Boi Neon" venceu prêmio especial do júri da seção Horizontes), em Berlim ("Mãe só Há Uma" recebeu o Teddy, honraria do público LGBT da mostra) e Cannes (festival recebeu "Aquarius" com entusiasmo e concedeu a "Cinema Novo" o título de melhor documentário).

    Ou seja, o Brasil completou o "grand slam" dos festivais internacionais de cinema. Surpreende-me, portanto, o mal-estar criado em torno da escolha do filme brasileiro que tentará uma indicação ao Oscar.

    "Aquarius", sem dúvida, conquistou algo grandioso em sua trajetória até aqui, visto que foi selecionado para a mostra oficial de Cannes, em maio. No festival, a equipe do longa protestou contra o governo, então interino, de Michel Temer.

    A partir de tal manifestação, o filme passou a ser avaliado, sobretudo, pela ótica política: quem é contra o atual governo tende a elogiar o longa, e vice-versa.

    Diante dos intensos debates dos últimos dias, questiono: por que "Aquarius" seria o único representante possível do país no Oscar?

    Num rápido levantamento dos 50 indicados dos últimos dez anos, apurei que 21 filmes possuem temática histórica, 12 se passam em locais exóticos, seis têm personagens com algum tipo de distúrbio e superação e 12 são dramas urbanos.

    Os filmes brasileiros acima citados, e outros de destacada qualidade, poderiam ser relacionados em categorias semelhantes.

    Após a manifestação em Cannes, "Aquarius" recebeu do Ministério da Justiça a classificação indicativa de 18 anos. Muitos bradaram que o longa era alvo de represália.

    Contestada pelos produtores, a indicação foi alterada para 16 anos, conforme solicitada inicialmente pela equipe.

    Há 25 anos lanço filmes no Brasil. Já tive longas ingênuos classificados como 18 anos e outros, mais picantes, como 16. A classificação indicativa no Brasil é cheia de surpresas. De toda forma, após reclamação, o problema foi resolvido.

    Vale esclarecer também que a comissão que escolheu "Pequeno Segredo" foi formada por nove integrantes. Todos profissionais conhecidos na atividade cultural, cineastas, produtores e gestores. Um deles é um jornalista que publicamente criticou o diretor de "Aquarius", Kleber Mendonça Filho, pela manifestação em Cannes.

    Pergunto: pela posição de um único integrante podemos concluir, como se fez nas redes sociais, que toda a comissão fez parte de um suposto complô contra "Aquarius"? Sei que ao menos dois integrantes participaram ativamente de campanhas de candidatos do PT há dois anos.

    Pelo barulho político que fez em Cannes, "Aquarius" deveria ser o candidato "natural" a representar o Brasil no Oscar? Se acharmos que sim, seria o mesmo que dizer que todos os mais de cem filmes brasileiros lançados nos últimos 12 meses são medíocres.

    A tarefa da comissão do MinC não era escolher o melhor filme brasileiro do ano, título para o qual "Aquarius" é fortíssimo candidato. A missão era selecionar o filme com mais chances de figurar entre os cinco finalistas do Oscar.

    "Pequeno Segredo" pode ou não ser um bom filme. Não é justo que se promova um massacre sem tê-lo visto. Liberdade é, antes de tudo, o direito de o outro pensar diferente de você.

    ANDRÉ STURM, cineasta, é diretor do programa Cinema do Brasil e presidente do Sindicato da Indústria do Audiovisual do Estado de São Paulo

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