• Opinião

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    Guilherme Wisnik

    Haddad revoluciona os usos da cidade

    28/09/2016 02h00

    O Brasil precisa que o PT tenha oposições qualificadas à esquerda, como a do PSOL. Ao mesmo tempo, é inacreditável que, logo após sofrer um escandaloso golpe parlamentar, os partidos de esquerda no país não consigam se unir minimamente e que a candidatura de Fernando Haddad -a mais progressista que tivemos nas últimas décadas - sofra as consequências disso.

    Refiro-me tanto à digna oposição de Luiza Erundina (PSOL), por um lado, quanto ao factoide Marta Suplicy (PMDB), por outro. Muito longe da esquerda, como se sabe, Marta pessoaliza o capital simbólico dos CEUs (Centros Educacionais Unificados) na periferia, ao mesmo tempo em que defende os privilégios das mansões dos Jardins e prega o aumento da velocidade dos carros.

    Sua estratégia é cínica e oportunista: esconde o êxito objetivo da política de Haddad, que diminuiu o trânsito e reduziu expressivamente os acidentes na cidade, lançando o falso bordão da "indústria da multa", que se aproveita do clima de acusações de corrupção contra o PT.

    Ocorre que Haddad, ao contrário, é o prefeito que combateu fortemente a corrupção, criando a Controladoria Geral do Município, que desmontou a máfia do ISS, recuperando mais de R$ 600 milhões desviados, e conseguiu renegociar a dívida (reduzida em R$ 25 bilhões), colocando em ordem as finanças.

    Por que isso parece não ser avaliado corretamente? É difícil dizer. Vivemos um momento de pouca clareza política em geral, no qual Donald Trump se afirma como o sincero que diz verdades e João Doria (PSDB) posa de trabalhador braçal. O poder de convencimento só depende do dinheiro disponível.

    Mas eis aí uma questão crucial. Haddad mudou profundamente a cidade dando as costas àquilo que normalmente se considera "trabalho". Assim, está no polo oposto de uma vasta tradição de políticos como Paulo Maluf (PP) mas também Lula e Dilma Rousseff (ambos do PT), para quem progresso significa obras.

    Advogado, Haddad produziu ações que não manipulam betoneiras, e sim leis, atuando sobre as formas de uso da cidade. Trata-se de um político de outro tipo, com uma visão urbana estratégica e cirúrgica.

    Com poucos recursos, criou não apenas faixas exclusivas de ônibus e de bicicletas -abriu avenidas ao uso dos pedestres, criou 150 linhas de ônibus noturnos e 120 praças com wi-fi livre.

    Significativamente, barrou o suspeitíssimo túnel da av. Roberto Marinho, o que, infelizmente, levou as empreiteiras envolvidas a suspender importantes obras na área de habitação social. Ainda assim, duplicou o número de Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) na cidade, por meio do Plano Diretor (notem que eu me concentro aqui em sua política urbana).

    É fato que Haddad não se pautou por medidas eleitoreiras, muito ao contrário, e talvez pague o preço político disso. Mas, para além ou para aquém da cegueira ideológica do momento, produziu uma cidade com novos valores, orientada pelos interesses coletivos e pela ética do compartilhamento.

    Uma cidade com secretarias de Direitos Humanos e de Igualdade Racial, em cujo ambiente mais franco e generoso frutificou um belo e improvável Carnaval de rua.

    Vivemos, nos últimos anos, significativos progressos com as novas pressões e práticas cidadãs de apropriação do espaço público no Brasil. No cenário nacional, a Prefeitura de São Paulo é a que melhor está conectada a essas vozes.

    Deixaremos essa experiência radical se esvair? Será que a divisão da esquerda, que caminha perigosamente para a atomização, afastando-se cada vez mais do governo, é um caminho inteligente a seguir?

    GUILHERME WISNIK, 44, é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e colunista da Folha. Foi curador-geral da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, em 2013

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