• Opinião

    Saturday, 14-Sep-2024 21:21:03 -03

    MARTIM VASQUES DA CUNHA

    Trump, o imprevisível

    11/11/2016 02h00

    O mundo ainda não percebeu a revolução ocorrida na madrugada da última quarta-feira (9). Donald Trump, conhecido entre os tupiniquins como Donaldo Trombeta, não apenas ganhou o pleito americano.

    Como disse Scott Adams (o criador do cartoon "Dilbert", que previu exatamente tudo o que ocorreu nesses meses de campanha), Trump não só mudou o jeito de fazer política. Ele mudou o modo como entendemos a realidade.

    Esqueçam os clichês progressistas segundo os quais Trump e seu eleitorado seriam "populistas", "xenófobos" e "nacionalistas". Isso é uma retórica reacionária de uma imprensa "iluminada" que recebeu a sua ordem de demissão sumária há alguns dias.

    Afinal de contas, segundo essa patota, ver o mundo pelos prismas ideológicos é um vício transformado em virtude, mas tal postura somente prova que os jornalistas, em especial os brasileiros, são uns pobres-diabos. Anseiam por esse mecanismo de sobrevivência psíquica porque simplesmente morrem -e não falo apenas em termos profissionais- se aceitarem a realidade tal como ela é.

    O que o "círculo de sábios" não percebe é que a resistência representada por Donald Trump não é algo próprio das categorias "direita" ou "esquerda". Trata-se da oposição de pessoas de carne e osso que divergem em muitas coisas, mas têm um interesse em comum: o desejo de que o Estado não se meta mais em suas vidas.

    Assim, uma grande parcela do povo americano decidiu se unir em torno de um problema concreto apresentado pelas exigências do dia a dia, e não por meio de uma retórica igualitária (e, nesse sentido, realmente populista).

    Essa incompreensão de um detalhe essencial da verdadeira política americana, que acabou por contaminar os diagnósticos sobre a eleição, fez-nos ignorar que os EUA sempre reagiram dessa forma, em especial quando se viam diante de impasses criados por intimações da vida, e não por slogans ideológicos.

    É só recuperarmos os exemplos da independência do país, dos "founding fathers", dos federalistas, do sulista Alexander Stephens, de Martin Luther King e do presidente Ronald Reagan.

    Basta lembrarmos também de governantes americanos que patrocinaram a intervenção excessiva do Estado no cotidiano do cidadão e deram-se mal no curto, no médio e no longo prazo. Veja os casos de Abraham Lincoln, Franklin Delano Roosevelt, John Kennedy, Richard Nixon, George W. Bush, Barack Obama e o casal Bill e Hillary Clinton.

    Donald Trump veio para alterar o establishment de Washington -e fez isso com os recursos mais inusitados. Em primeiro lugar, como bom empreendedor, pagou a campanha com uma parte considerável do seu próprio dinheiro, enquanto Hillary apelou para doadores de grandes empresas, interessadas em manter-se no status quo.

    Em segundo, subverteu o discurso conciliador de um Partido Republicano que se recusou a entender que os EUA não queriam mais saber de senhores bem comportados, como foram John McCain e Mitt Romney nas disputas anteriores, nas quais Obama obteve dupla vitória.

    Em terceiro, por meio de técnicas de persuasão cognitiva que a cada ataque da oposição o deixavam mais fortalecido, Trump mostrou que seu comportamento imprevisível era, no fundo, o pavio da mudança desejada pelos americanos após oito anos de governo progressista.

    No fim, ao escolherem um candidato que ninguém sabe quando será um dr. Donald ou um mr. Trump (segundo a definição perfeita do ensaísta Roger Kimball), os EUA optaram pela incerteza como orientação genuína no modo de fazer política.

    Esse foi o efeito bumerangue que ninguém previu. Por isso Donald Trump conseguiu transformar, numa única tacada, Barack Obama, o casal Clinton, os republicanos e os democratas em tábulas rasas.

    A imprevisibilidade do novo presidente americano é a mostra de que, como diriam os chineses, tempos interessantes se aproximam. Isso, para quem já percebeu que a nossa realidade não é mais a mesma, é algo extremamente estimulante.

    MARTIM VASQUES DA CUNHA, doutor em ética e filosofia pela USP, é escritor e jornalista. Publicou os livros "Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More" (Vide, 2012) e "A Poeira da Glória" (Record, 2015)

    PARTICIPAÇÃO

    Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024