• Opinião

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    José Ruy Lozano

    Uma academia de bem poucas letras

    15/11/2016 02h00

    Primeiro, é preciso desfazer certas ideias do senso comum quanto à Academia Brasileira de Letras. A instituição, fundada por Machado de Assis, segue o modelo da Academia Francesa, que reúne intelectuais de várias áreas, não só da literatura.

    Historiadores, filólogos, políticos, estudiosos da teoria literária, médicos, biólogos. Sim, biólogos: Jacques Cousteau, o famoso documentarista da vida marinha, foi um dos "imortais" franceses.

    Isso posto, observemos com mais atenção a ecologia atual de nosso "Petit Trianon". Para quem não sabe, o prédio-sede da ABL foi uma doação do governo francês, réplica do palacete conhecido por esse nome em Versalhes. Convém não lembrar que o edifício original foi construído a mando do rei Luís 15 para abrigar sua amante, Madame de Pompadour.

    Uma visita ao endereço eletrônico da ABL (www.academia.org.br) permite checar que, com a eleição do economista Edmar Bacha no dia 3 de novembro, apenas 13 dos atuais acadêmicos são romancistas, poetas ou dramaturgos. Isso se fizermos a concessão de colocar o ex-presidente José Sarney na condição de poeta e romancista.

    Todos os demais 26 membros (há uma cadeira vaga, num total de 40) destacam-se sobre tudo por outras atividades: são professores universitários (como Alfredo Bosi e Cleonice Berardinelli), historiadores (José Murilo de Carvalho, Alberto da Costa e Silva), sociólogos (Rosiska de Oliveira, Hélio Jaguaribe), políticos (Marco Maciel), advogados, jornalistas.

    Foi mais ou menos assim desde o início. Quando inaugurada, a Academia de Letras também contava com críticos literários (Silvio Romero), historiadores (Francisco Varnhagen), juristas (Rui Barbosa).
    O número daqueles que produziam literatura, no entanto, era bem maior. Majoritário, aliás. No momento de sua fundação, a ABL contava com 28 escritores; apenas 12 membros provinham de outras condições. A proporção era quase exatamente inversa à de hoje.

    Outra lacuna da Academia é a preocupante ausência de filólogos, linguistas e gramáticos. Os grandes dicionaristas brasileiros, como Aurélio Buarque de Hollanda, Antônio Houaiss e Celso Cunha, fizeram parte da instituição, que tem deveres estabelecidos em lei: publicar o "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa" e cuidar da nomenclatura gramatical brasileira.

    Hoje, os únicos gramáticos entre seus membros são Domício Proença Filho e Evanildo Bechara, com respectivamente 80 e 88 anos.

    A maioria dos ocupantes da Real Academia Espanhola, por exemplo, é formada por linguistas, e a totalidade dos membros da Crusca (a academia italiana, sediada em Florença) é de estudiosos do idioma.

    A ABL já enfrentou polêmicas e suspeições históricas graves: a presença de Getúlio Vargas é uma delas. A eleição do general Lyra Tavares, ministro do Exército de Costa Silva, em plena ditadura militar, é outra. Por essas presenças incômodas, muitos se recusaram a ingressar, como Carlos Drummond de Andrade. O prestígio dela declinou, mas não se desfez por completo.

    A carência de escritores e de especialistas em língua portuguesa, entretanto, pode ser-lhe fatal.

    Lamentável, pois uma instituição como a Academia poderia atuar de forma semelhante às suas correspondentes estrangeiras e ser instrumento de maior representatividade para a elevação do prestígio da cultura brasileira.

    JOSÉ RUY LOZANO é autor de livros didáticos e professor de produção textual do Instituto Sidarta

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