• Opinião

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    MARCELO CALERO

    Os Bruzundangas

    15/01/2017 02h00

    Sempre é tempo de revisitar a genialidade de Lima Barreto e sua literatura "militante". O exercício é especialmente interessante no contexto da crise ética e moral sem precedentes que vivemos em nosso país.

    Em 2017, celebramos 95 anos da publicação da coleção de crônicas "Os Bruzundangas", em que Lima relata viagem à "República de Bruzundanga", onde há "matéria de sobra para livrar-nos, a nós do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos". Na elegante ironia do autor, vemos a atualidade de seu texto e refletimos a respeito dos caminhos que nos são possíveis.

    "A grande nação vivia aos solavancos, sem estabilidade financeira e econômica", dizia o viajante a respeito da Bruzundanga. E os políticos daquele país? "São o pessoal mais medíocre que há. (...) A primeira coisa que um político de lá pensa, quando se guinda às altas posições, é supor que é de carne e sangue diferentes do resto da população."

    Seria rudimentar fazer tábula rasa da classe política; pontificar que só há imprestáveis é antes um desserviço à nossa jovem democracia do que bandeira de luta. Há, sim, políticos sérios e honrados.

    É legítima, contudo, a indignação dos brasileiros frente ao comportamento de alguns, que, no dizer perfeito de Lima Barreto, se consideram feitos de diversa matéria. Desgraçadamente, ainda hoje persistem aqueles que dedicam suas funções à lógica de uma "ação entre amigos", ou de grande "balcão de negócios".

    A atuação de instituições como o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal, fez despertar em nossa coletividade um sentimento vivo de que, vencidas todas as sangrias necessárias, será possível o surgimento de um novo país.

    Trata-se, aqui, de uma mudança como jamais houve, em práticas, métodos e formas, no nível macro e no micro, desde grandes licitações até o dia a dia das repartições públicas.

    O que busca e valoriza a sociedade brasileira são pessoas dignas, que tenham o espírito de devotar sua vida à construção de uma sociedade mais justa. Essa nova realidade, no entanto, só será possível na medida em que haja efetivo engajamento dos cidadãos na política, produzindo uma saudável renovação de quadros.

    O que de fato precisamos é que a chamada "maioria silenciosa" seja finalmente protagonista, e que aqueles que formam o Brasil verdadeiro e conectado abandonem seus preconceitos e se dediquem ao país também na administração pública.

    E, voltando à Bruzundanga, como eram preenchidas as vagas de direção em suas repartições?

    "– O senhor quer ser diretor do Serviço Geológico da Bruzundanga? –pergunta o ministro.

    – Quero, Excelência.

    – Onde estudou geologia?

    – Nunca estudei, mas sei o que é vulcão.

    – Que é?

    – Chama-se vulcão a montanha que, de uma abertura, em geral no cimo, jorra turbilhões de fogo e substâncias em fusão.

    – Bem, o senhor será nomeado."

    Ora, é imprescindível, igualmente, a contínua profissionalização do serviço público e das instituições que o conformam.

    A observância da eficiência deve ser a grande pedra de toque do trabalho da nossa máquina pública, pautando-se por resultados, entregas e planejamento estratégico.

    Devemos e podemos ter esperança de que, em breve, a obra de Lima Barreto registrará apenas práticas superadas. Oxalá suas críticas, que não pouparam nem sequer a grande Bertha Lutz e sua legítima causa, não mais encontrem paralelo no nosso cotidiano:

    "A senhora Bertha Lutz, sabendo que um ministro mandara ouvir um dado funcionário sobre se as moças podiam ser admitidas em concurso, saiu-se de lá de sua Liga pela Emancipação da Mulher e resolveu oficiar a esse funcionário, pedindo que o parecer dele fosse de acordo com o programa de sua 'liga'. Esta senhora é funcionário público e deveria saber que não é decente ninguém insinuar a um funcionário, seja por que meio for, que os seus pareceres sejam dados em tal ou qual sentido. Em certas ocasiões chega a ser até crime..."

    Viva Lima Barreto!

    MARCELO CALERO, diplomata, foi ministro da Cultura do governo Temer até novembro de 2016. No Rio, foi secretário municipal de Cultura (governo Eduardo Paes)

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