• Opinião

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    HENRIQUE GOLDMAN

    Nomeação revoltante

    02/03/2017 02h00

    Uma notícia surpreendente dominou a imprensa britânica nos últimos dias. A oficial de polícia Cressida Dick será a nova comandante da Scotland Yard, a polícia metropolitana da capital britânica.

    A nomeação gera perplexidade não pelo fato de uma mulher ocupar o mais alto cargo policial do Reino Unido, mas sim por Dick ter comandado a desastrada operação antiterrorista que resultou no assassinato do imigrante brasileiro Jean Charles de Menezes, em 22 de julho de 2005. Ele foi confundido com um terrorista que, dias antes, havia participado de atentado a bomba em Londres que matou 52 pessoas.

    Na ocasião, Dick não deu uma ordem para a execução, mas, em depoimento durante inquérito sobre o caso, admitiu ter, via rádio, mandado um grupo de policiais armados entrar no metrô e "parar o suspeito custe o que custar". Naquele contexto, foi uma verdadeira sentença de morte. Temendo as consequências, provavelmente ela escolheu as palavras menos comprometedoras.

    Jean Charles tornou-se suspeito por mero acaso. O prédio em que morava era vigiado porque um de seus vizinhos conhecia um suspeito que nem ali morava. Ao sair de casa no dia da tragédia, ele carregava uma mochila, em que, segundo a polícia, poderia esconder uma bomba.

    Quando os policiais o ouviram falar ao telefone em "língua estrangeira", a suspeita ficou maior. Para os homens de Dick, talvez o português soasse como árabe.

    Jean Charles andava depressa por estar atrasado, o que foi interpretado como uma tentativa de fuga. Os policiais nunca se identificaram ou deram voz de prisão. Foram sete tiros à queima-roupa na cabeça, para não dar ao suposto terrorista oportunidade de detonar a bomba.

    Apesar de tudo, os erros de Dick e dos policiais são compreensíveis num certo sentido, pois naqueles dias os terroristas continuavam soltos e a tensão na cidade era enorme. Talvez por isso nenhum policial tenha sido punido.

    Há, no entanto, outras falhas graves que tornam essa nomeação ainda mais revoltante. Tentando encobrir o próprio erro e incriminar Jean Charles, a polícia divulgou depoimentos de testemunhas que diziam tê-lo visto pulando as catracas do metrô para fugir, o que nunca ocorreu.

    Divulgaram um exame toxicológico no qual traços de cocaína foram detectados no sangue dele, insinuando que o uso de drogas poderia ser a razão de seu aparente nervosismo e sua agitação.

    Foram vergonhosas também as inúmeras tentativas de manipular a família de Jean Charles, pessoas humildes, que mal sabiam falar inglês, em estado de choque.

    Segui o caso muito de perto quando dirigi o longa-metragem "Jean Charles" (2009), protagonizado por Selton Mello, que retrata a vida do eletricista e de seus três primos que vieram para Londres se aventurar, dar muito duro e ajudar suas famílias no Brasil.

    A produção do filme contratou um ex-policial para nos dar consultoria. Ele nos avisou que estávamos sendo vigiados pela polícia e que até um tradutor havia sido contratado para analisar nossos e-mails e telefonemas. Certamente essas informações foram "vazadas" para nos intimidar.

    Tudo isso acontece impunemente num dos chamados "bastiões da democracia ocidental". Brasileiros, não estamos sós. A ascensão de Dick nos faz lembrar de que, infelizmente, a corrupção e a incompetência não são apanágio de nossa política e de nossa polícia. Nem a violência e a arrogância.

    HENRIQUE GOLDMAN é cineasta. Dirigiu, entre outros, o longa "Jean Charles" (2009)

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