• Opinião

    Monday, 29-Apr-2024 01:14:04 -03

    Pierpaolo Cruz Bottini

    A prerrogativa de foro

    15/03/2017 02h00

    O jurista Victor Nunes Leal dizia que a prerrogativa de foro, antes de ser privilégio, é uma garantia bilateral, que opera contra e a favor do acusado. Essa foi a ideia do constituinte ao prever que os crimes cometidos por certas autoridades serão julgados por tribunais, e não por juízes de primeiro grau.

    O instituto do foro protege o exercício do cargo porque atribui a um grupo de magistrados, e não a um julgador isolado, a competência para processar e julgar alguns agentes políticos. Com isso, as decisões sobre suspensão, cassação e prisão ou a imposição de medidas que afetem o exercício das funções são submetidas a uma apreciação coletiva.

    Por outro lado, o constituinte entendeu que a prerrogativa garantiria um julgamento adequado, livre de ingerências políticas. Imaginava-se que um juiz de primeiro grau, que vive e trabalha na região em que o investigado exerce poder político e social, não teria condições de decidir de forma imparcial.

    Por mais louvável que tenha sido a intenção, a prerrogativa não funcionou, transformou-se em um privilégio injustificado. Dados recentes da Fundação Getulio Vargas mostram a dificuldade de processamento de ações penais nos tribunais. Os atos são lentos, as decisões são raras e a prescrição é realidade concreta.

    Isso não significa que os tribunais trabalhem pela impunidade. Ocorre que esses órgãos não têm vocação para julgamentos penais. Essa tarefa exige ouvir testemunhas, analisar perícias, debruçar-se sobre gravações telefônicas e documentos.

    Os ministros dos tribunais, preparados para discutir a validade e interpretação de normas, não são talhados para investigar fatos. Não é esse o papel institucional deles.

    Essa baixa funcionalidade fortalece os argumentos pela extinção da prerrogativa de foro. Surgem propostas para que todos sejam julgados em primeiro grau, independente do cargo ocupado.

    A ideia é sedutora pelo aspecto republicano, mas tem o problema de colocar nas mãos de uma única pessoa -ainda que de um preparado magistrado- o poder de decidir sobre a continuidade ou não do exercício de funções públicas consideradas relevantes pela Constituição, muitas vezes sufragadas por um processo eleitoral.

    Diante do impasse, é hora de superar a rasa discussão sobre ser contra ou a favor da prerrogativa de foro e perceber que existem opções intermediárias, pelas quais é possível assegurar um mínimo de estabilidade institucional e, ao mesmo tempo, garantir um processo penal eficiente.

    Uma delas é limitar a prerrogativa de foro aos crimes relacionados às atividades políticas. Outra seria atribuir a um mesmo juiz de primeiro grau -designado pelo STF para isso, e com mandato- a competência para julgar os processos dos ocupantes de cargos relevantes.

    Uma terceira hipótese seria extinguir a prerrogativa de foro com reserva de cautelares. Todos seriam julgados por juízes de primeiro grau, mas decisões que afetem o exercício das funções, como prisão ou afastamento de atividades, seriam submetidas a um tribunal.

    Essa parece a opção mais consistente. Tem a vantagem da eficiência, pois a primeira instância é mais capaz de instruir um processo penal, e da racionalidade, por retirar dos tribunais uma considerável carga de trabalho.
    Por outro lado, garante estabilidade, ao remeter a um grupo de magistrados, a um colegiado, as decisões mais sensíveis, que possam impactar no exercício de funções dos agentes políticos.

    Seja qual for a opção, o debate deve ir além do simples "pró/contra" a prerrogativa de foro. O instituto tem sua razão de existir, uma vez que garante a segurança institucional. Transformado hoje em privilégio, merece ser reformado.

    A complexidade do problema exige reflexões mais profundas, que importem em alternativas elaboradas e coerentes com nosso ordenamento. Essa é a única forma de aprimorar o sistema de forma racional, dentro de um debate democrático.

    PIERPAOLO CRUZ BOTTINI é advogado e professor livre docente de direito penal da USP

    PARTICIPAÇÃO

    Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024