• Opinião

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    Palmira Petratti Teixeira

    Cem anos da Vila Maria Zélia

    17/05/2017 02h00

    Na rua dos Prazeres, no bairro Belém (zona leste de São Paulo), há um espaço da memória paulistana: a Vila Maria Zélia, retrato de uma época e de uma forma de ocupação do espaço urbano.

    A vila seguiu o modelo de outros núcleos operários predominantes no período: casas edificadas no interior de um terreno, separadas da via pública por um portão. Na entrada, um grande jardim com coreto e igreja.
    Era cortada por seis ruas principais e quatro transversais, tendo ao fundo o rio Tietê. Contava com 198 casas de seis diferentes tamanhos.

    Quem visita hoje o local tem a impressão de voltar no tempo. Jardim, árvores e flores acolhem crianças e adultos ao sol. A capela São José compõe o ambiente de serenidade.

    No entanto, um olhar mais atento para os lados reduz o encanto: os imóveis, de uso coletivo e hoje pertencentes ao INSS, sofrem o desgaste do não uso e abandono. Ainda assim, mantêm a atmosfera mágica da Vila Maria Zélia. Parafraseando a conhecida canção, alguma coisa acontece no coração de quem ali chega.

    O idealizador do projeto foi Jorge Street, empresário moderno e pioneiro, nascido no Rio de Janeiro em 1863. Médico, cursou humanidades na Alemanha à época da ascensão dos partidos socialistas e das primeiras leis trabalhistas bismarkianas.

    Entrou para a atividade industrial por herança paterna e, em 1904, adquiriu a fábrica Santana (SP), iniciando a expansão da Companhia de Tecidos de Juta, produtora de sacaria.

    Street se destacou como liderança por sua capacidade de conciliar questões patronais e operárias. Defendia o direito dos trabalhadores à sindicalização e à greve, como maneira de evitar antagonismos entre as classes, e cristalizava a figura do capitalismo mais desenvolvido no país.

    Sua obra mais expressiva foi a criação do complexo fábrica e vila operária. À fábrica higiênica, ventilada e equipada, associavam-se ações visando melhorias na qualidade de vida do trabalhador. O casal Street e Zélia Frias supervisionava moradias, educação e saúde.

    O cuidado com as crianças nas creches e escolas era primoroso. A família Street participava das festas populares, natalinas e religiosas com os trabalhadores da vila, fato que espantava os demais industriais, sensibilizava os moradores e irritava o movimento operário, o que possibilitava ao empreendedor um controle da força de trabalho e de seus possíveis conflitos. 

    Em 1923, Street, com dificuldades financeiras, renunciou à direção da companhia, porém saldou seus débitos em 1925. A fábrica e a vila tiveram trajetórias peculiares.

    O complexo mudou de proprietários: Scarpa, Guinle e Estado. A fábrica serviu de presídio político em 1936 e 1937 e, em 1969, as casas foram vendidas aos trabalhadores pelo sistema BNH (Banco Nacional da Habitação).

    A Vila Maria Zélia é símbolo das relações de trabalho no Brasil. Conhecida pela harmonia arquitetônica de inspiração inglesa e pelas condições dignas de moradia, tornou-se um local querido por todos que ali viveram. "Era uma  maravilha", sintetizou a tecelã Cinta Amantero.

    Cem anos depois, Street, esse empreendedor moderno e consciente, tem muito ainda a dizer. A vila resiste como seu memorial ideológico. Impõe-se hoje a reflexão sobre os espaços públicos pertencentes ao INSS, sem uso utilitário e em ruína.

    Esse patrimônio industrial precisa ser restaurado e integrado à comunidade na forma de centros e bens culturais. Uma justa homenagem a Street e aos operários brasileiros.

    PALMIRA PETRATTI TEIXEIRA, doutora em história pela USP, foi professora de história do livro na Unesp. Escreveu "A Fábrica do Sonho - A Trajetória do Industrial Jorge Street" (ed. Paz e Terra)

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