• Opinião

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    BRAULIA RIBEIRO

    O que fazer com Caetano?

    09/10/2017 02h00

    Marco Aurélio Canônico/Folhapress
    Caetano Veloso e seus filhos fazem show no Rio de Janeiro
    Caetano Veloso e seus filhos fazem show no Rio de Janeiro

    Minha musa brasileira é o Caetano. Caetano é um cirurgião de ideias, disseca conceitos, esquarteja clichês. Quase-negro, quasi-intelectual, Caetano personifica a complexidade do Brasil. Na música "Reconvexo", ele nos des-racializa. As imagens da nossa brasilidade promiscuamente amalgamada passam vertiginosas diante de nossos olhos.

    Começa nos intrigado com o mundo plano em que a areia do Saara suja os carros de Roma, nos leva de Sófocles para a Amazônia, passando pela Salvador que já viveu seu pelourinho, mas agora é o reino das matriarcas negras da umbanda.

    Vamos aí sentindo o suingue de um negro da Guiana Francesa, Henri Salvador, perdido em Copacabana, influenciando a bossa nova do branco Vinicius.

    Ouvimos o batuque do Oludum, tão irreverente quanto as imagens criadas pelo americano Andy Warhol. Ser Brasil é seguir a novena católica, é ser um pobre que gosta de luxo, um mestre do futebol, ser tudo e não ser nada. "Reconvexo" aponta para o ridículo da importação dos paradigmas raciais americanos. Quem é preto ou branco neste país de misturas bem sucedidas?

    Quem é católico, macumbeiro ou evangélico? Quem é socialista e não gosta de luxo como Joãosinho Trinta? O Brasil é um país que se define pela copulação incessante dos contrários. Nós nos encontramos em intercursos culturais, raciais, musicais, políticos.

    Não é permitido à academia enxergar esta realidade. Poderíamos, sociólogos brasileiros, ousar dizer que a raça é um pé de página na complexidade do Brasil? Poderíamos dizer que as palavras "negro" -aliás, substituída agora pelo "preto", a exemplo da etiqueta lexical americana- e "branco" não nos definem mais do que "fúcsia" ou "verde" nos definiriam?

    A subalternidade do pensamento brasileiro se manifesta aí. Temos que baixar a cabeça e render loas aos norte-americanos cegos pelo Foucault-cionismo que insiste em imprimir na alma brasileira as divisões que eles, puritanos assexuados, permitiram e cultivaram. Para eles Caetano agora é passé, politicamente incorreto, instrumento de dominação da pseudo-consciência.

    Em "Vaca Profana", ele louva a condição feminina, comparando mulheres às vacas sagradas da Índia, "vacas profanas" incitadas a levantarem seus chifres acima da manada e não se deixarem dominar.

    Mas a minha favorita ode à mulher ainda é "Tigresa". A mulher se torna humana ao mesmo tempo em que é objetificada. Sua "pele de ouro marrom" se esfrega à do poeta enquanto descreve uma vida com interesses inesperados, como política, sucessos no palco, e o sonho de uma utopia em que as mulheres dominarão sobre os homens.

    A femme-fatale que canaliza seu poder de mulher para a sexualidade se torna a mulher comum, vive amores e desencantos e quer mais que o mero ato; deseja ser gente, não importa com quem.

    O poeta se encanta com a força da mulher, mas no final despreza seu falatório e, como macho que se preza, declara: "As garras da felina me marcaram o coração, mas as besteiras de menina que ela disse, não." Ele termina a canção ao violão, como um cachorro que chacoalha o corpo para se secar da chuva. Ele precisa da música para se livrar da história e da imagem da mulher de uma noite.

    "Tigresa" honra ou insulta as mulheres? Na visão feminista atual a música é machista, objetifica a mulher. Quando foi composta, quebrava tabus, humanizava as "deusas" do sexo, expunha o machismo da abordagem masculina nua e crua. Recomendo que Caetano seja ignorado, para que a visão colonizada da academia se mantenha descrevendo um Brasil que não somos nós.

    BRAULIA RIBEIRO é aluna/pesquisadora de Teologia na Universidade de Aberdeen (Escócia) e mestranda em Divindade da Universidade Yale (EUA)

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