• Opinião

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    FABIO DA ROCHA GENTILE

    Como a lei pode alcançar a fraude

    06/11/2017 02h00

    Fabio Braga - 19.dez.2016/Folhapress
    Chamada Derbi - Entrevista com Marcelinho Carioca (Fabio Braga - 19.dez.2016/Folhapress)
    O ex-jogador Marcelo Pereira Surcin, o Marcelinho Carioca, suspeito de ocultar propriedade de resort

    Em meio às Operações Lava Jato, Carne Fraca, Narcos e tantas outras na área criminal, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) autorizou uma inovadora investigação na área cível, que representa um grande avanço da jurisprudência brasileira em matéria de cobrança de dívidas.

    A iniciativa visa a apurar a ocultação de bens de um devedor por meio de "testas de ferro" ou "laranjas", ou seja, pessoas que aparecem como proprietárias desses bens, mas não o são.

    O caso envolve a cobrança de dívida contraída pelo ex-jogador de futebol Marcelo Pereira Surcin, o Marcelinho Carioca, como relatou esta Folha em 3/10.

    Utilizado para treinamento e concentração de atletas, o Resort Sports Atibaia pertence a empresas em cujos registros Marcelinho não figura como sócio. Mas há fortes indícios que o apontam como dono de fato desse empreendimento.

    O ex-jogador assinou documentos de ajustamento de conduta por danos ambientais e parcelamento de IPTU como responsável pelo resort; em depoimento policial, um dos sócios formais do negócio reconheceu ter "emprestado" seu nome para Marcelinho Carioca abrir a empresa; e, na visita de um oficial de Justiça ao hotel, uma funcionária declarou que o resort é de propriedade do ex-atleta.

    A recorrente prática de ocultar bens, para não deixá-los ao alcance de credores, dificilmente se faz transferindo-os às empresas ou aos sócios do próprio devedor. Há muito tempo isso se tornou obsoleto, pois em fraudes como esta, invariavelmente, o devedor não aparece nem como proprietário, nem como sócio do proprietário.

    É por isso que as fraudes só podem ser reveladas pela constatação das relações informais, isto é, vínculos de propriedade e de participação societária que se verificam de fato, sem registros.

    O direito não ignora tais relações, tanto que nos permite prová-las por indícios. Ao dizer que "a existência da sociedade pode ser demonstrada por terceiros por qualquer meio, inclusive indícios e presunções", a Terceira Turma do STJ apenas aplicou os artigos 212, inciso IV, e 987 do Código Civil Brasileiro de 2002.

    Ao admitir a "desconsideração inversa" para coibir a transferência de bens a empresas controladas pelo devedor, os ministros do STJ modernizaram a principal ferramenta jurídica de que podem se valer os inúmeros credores até agora driblados por fraudadores endividados.

    Trata-se da chamada desconsideração da personalidade jurídica, pela qual as dívidas de uma empresa utilizada para a fraude podem ser cobradas de seus sócios, assim como, na mesma hipótese de uso indevido das pessoas jurídicas, uma empresa pode responder por dívidas pessoais dos sócios —a denominada "desconsideração inversa".

    Agora, a diferença é que essa emblemática decisão do STJ inaugurou a desconsideração da personalidade jurídica das "sociedades de fato", medida essencial para identificar fraudes baseadas em relações societárias informais, cujo propósito seja esconder bens, recursos financeiros e seus verdadeiros donos.

    É uma excelente demonstração de que o Judiciário pode fazer melhor uso de ferramentas que já existem para propiciar a efetiva apuração de fraudes e evitar que formalidades criadas para dissimulá-las sirvam de subterfúgio aos seus autores —sejam eles quem forem.

    FABIO DA ROCHA GENTILE é advogado e sócio fundador do BGR Advogados

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