• Opinião

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    ALEXANDRA LORAS

    O racismo é sempre dos outros

    19/11/2017 02h00

    Danilo Verpa/Folhapress
    PARATY - RJ - 06.07.2013 - 21h30 - Mesa "O Povo e o Poder no Brasil com Andre Lara Resende e Marcos Nobre com intermediacao de Willian Waack durante a Flip 2013 em Paraty. (Foto: Danilo Verpa/Folhapress, ILUSTRADA)
    William Waack durante a Flip 2013, em Paraty

    Antes que barulhentos defensores do jornalista William Waack me acusem —como fizeram com muitos críticos— de agredir direitos individuais ou de promover ato de covardia ressentida, é preciso dizer com clareza: o que está em questão não é só se Waack é racista ou se cometeu atos racistas em sua bem-sucedida e respeitada carreira jornalística. É, sim, se seu gesto vazado em vídeo constitui atitude racista.

    Este me parece ter sido seu erro fundamental: o comentário foi desrespeitoso e claramente racista. Waack pode até ser brilhante, mas cometeu mais do que um deslize numa conversa privada, sem saber que se tornaria pública.

    O fato é que ele fez piada racista e se referiu a pessoas negras de forma pejorativa. Repetiu uma frase com que nós, negros, nos deparamos cotidianamente: "Coisa de preto". Um insulto com ar de leveza e humor, mas acima de qualquer coisa um insulto racial.

    "Coisa de preto", no sentido usado pelo jornalista, equivale às pequenas violências simbólicas enfrentadas no dia a dia pelos negros. Passamos a vida ouvindo piadas e brincadeiras de mau gosto, por exemplo, sobre ter cabelo crespo como sendo "duro" ou "ruim".

    O mais importante nessa polêmica é o quanto o racismo na fala de Waack representa o racismo estrutural brasileiro. Com um agravante: aqui no Brasil há uma tradição que sempre põe o "mal" no outro.

    O pecado corrente é o do vizinho, jamais o nosso; agressores são os outros, nunca nós mesmos; apontamos o dedo e atacamos atos e gestos racistas como o do jornalista, mas ignoramos práticas igualmente racistas ao nosso redor, até dentro de nós mesmos. São mais sutis, porém tão ou mais violentas e danosas quanto a de Waack.

    O episódio diz muito sobre a forma brasileira de expressar o racismo. É como se o Brasil não fosse racista, mas um país onde existe racismo. Anos atrás, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, da USP, publicou uma pesquisa segundo a qual 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito, mas 98% disseram conhecer pessoas que manifestavam algum tipo de discriminação racial. Ou seja: o racismo está dentro de nós e toma nossa alma, mas só o admitimos no outro.

    Esse tipo de visão acaba reforçando a ideia de que o racismo só aparece em atitudes como a de Waack, e no riso conivente de Paulo Sotero, o jornalista que aparece no vídeo ao seu lado. Nenhum jornalista comentou isso. Ignora-se, assim, um complexo sistema de opressão, que nega direitos essenciais aos negros.

    Como afirmou Djamila Ribeiro, ex-secretária-adjunta de Direitos Humanos de São Paulo, basta ligar a TV e contar: quantas pessoas negras são apresentadoras? Nas universidades, quantos professores são negros? Quantos negros há em cargos de chefia? Nada disso é "coisa de preto"?

    A indignação não pode se resumir à reação ao comportamento de Waack, sob pena de transformarmos o debate sobre o racismo brasileiro numa discussão cosmética a respeito de gestos isolados.

    Chama a atenção que só colegas brancos tenham reagido em defesa do jornalista. E mais: o privilégio do homem branco é tamanho que a Globo apenas o afastou. Nos EUA ou em países da Europa, ele teria sido demitido e processado diante do racismo exposto em sua atitude.

    Só produziremos um debate real quando brancos perceberem que gestos isolados dizem respeito a um problema estrutural, do qual fazem parte seus privilégios e o seu racismo não revelado. É preciso mostrar que "coisa de preto" não é fazer o barulho que tanto incomodou Waack, muito menos tem a ver com a malemolência tão tristemente retratada pela historiografia nacional como um traço do negro.

    "Coisa de preto", isto sim, diz respeito à sua enorme riqueza cultural, ao trabalho árduo de quem ajudou a construir este país como Oscar Freire, André Rebouças, Teodoro Sampaio, Machado de Assis. Que alguém me mostre uma igreja, uma estrada ou um edifício que não foi construído por negros no Brasil. É nosso dever mudar a narrativa preconceituosa de nossa época.

    ALEXANDRA LORAS, 40, é ex-consulesa da França em São Paulo; mestre em Gestão de Mídias pela Escola de Ciência Política de Paris (IEP), dá palestras sobre diversidade e empoderamento feminino e é colunista da revista "Serafina", da Folha

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