• Opinião

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    MARTIM VASQUES DA CUNHA

    Como se faz uma catástrofe

    05/12/2017 08h00

    Nelson Antoine/Folhapress
    SAO PAULO, SP, 29.09.2017: PROTESTO ARTISTA NU-SP - Pessoas realizam um protesto contra a pedofilia e em repudio a performance do artista Wagner Schwartz, que realizou uma performance nu no Museu de Arte Moderna (MAM) e na ocasiao uma crianca de aproximadamente quatro anos que assistia a performance tocou em seu pe, durante a tarde desta sexta feira, no Museu de Arte Moderna. (Foto: Nelson Antoine/Folhapress) ***PARCEIRO FOLHAPRESS - FOTO COM CUSTO EXTRA E CRÉDITOS OBRIGATÓRIOS***
    Grupo protesta contra a performance no MAM, em São Paulo

    Em uma anotação feita no fim de sua vida, o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1865) escrevia que ensinaria ao seu povo como se fazia uma catástrofe.

    Quando releio essa observação, não posso deixar de pensar nos movimentos da chamada "onda conservadora" que pululam pelo Brasil, como o que protestou contra a vinda da escritora Judith Butler ou as exposições promovidas pelo banco Santander (o famigerado "Queermuseu) e pelo MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo).

    É claro que há uma diferença entre os tipos de movimentos das várias tendências que participam desta "onda conservadora" e que fazem a festa da mídia.

    São diferenças de aparência, não de essência. Se os protestos contra Butler são organizados por uma parcela insatisfeita da população brasileira, mais preocupada com questões morais do que econômicas, as manifestações nas redes sociais contra as polêmicas exposições são atos contra a impotência provocada pelo descaso de um Estado Providência.

    Este, aliado a uma classe artística insensível ao que seria uma visão "normal" da família e da sexualidade, espolia cada vez mais a vida particular do cidadão brasileiro —que, atormentado por um projeto de poder de claras tendências totalitárias (e independentemente de qual for o lado partidário), decide transformar a vida do establishment em um inferno sem fim.

    Contudo, ambos partem do mesmo princípio, difuso o suficiente para enganar os bons homens e corromper o caráter de quem ainda não descobriu que o caminho do cão está pavimentado de boas intenções.

    Para diagnosticá-lo corretamente há de se fazer a distinção entre a revolta e o ressentimento. Como já disse Albert Camus (1913-1960) no célebre "O Homem Revoltado", este é alguém que diz "Não!", ou "Vocês passaram do limite!".

    Nos nossos movimentos da "onda conservadora" há mais uma semente de revolta; mas, como no Brasil as coisas são percebidas lentamente, temo dizer que também o ressentimento pode se acumular e suprimir a nobreza que (dizem) nortearia tais eventos.

    Vejamos a distinção sutil que Camus faz entre a revolta e o ressentimento, a partir dos conceitos de Max Scheler (1874-1928): "O ressentimento é (...) como uma autointoxicação, a secreção nefasta, em um vaso lacrado, de uma impotência prolongada. A revolta, ao contrário, fragmenta o ser e o ajuda a transcender. Ela liberta ondas que, estagnadas, se tornam violentas. Mas [o ressentido] inveja aquilo que não se tem, enquanto o revoltado defende aquilo que é. (...) O ressentimento transforma-se em arrivismo ou em amargura. Mas, em ambos os casos, a pessoa quer ser algo que não é. (...) O revoltado, por outro lado, em seu primeiro movimento recusa-se a deixar que toquem naquilo que ele é. Ele luta pela integridade de uma parte de seu ser. Não busca conquistar, mas impor".

    É isso o que os nossos manifestantes "conservadores" devem tomar cuidado: jamais devem conquistar o poder que não está em suas mãos e sim persuadir os outros a cumprirem o princípio da lei que julga igualmente todos os cidadãos, inclusive os políticos que nos representam e os artistas que educam nossas sensibilidades.

    A ausência dessa distinção é o ápice do que ocorre quando se deixa o ressentimento permear a consciência. Este pode ser o fim dos nossos manifestantes contra "tudo o que está aí". E por um motivo muito simples: antes de tudo, eles devem perceber que, infelizmente, a corrupção é a norma dos relacionamentos humanos e que ela começa dentro de nós mesmos —e não será um protesto messiânico que salvará a pátria doente.

    Enquanto os brasileiros não realizarem essa pequena revolução interior, caminharemos pouco a pouco para uma catástrofe moral de proporções gigantescas e, paradoxalmente, subterrâneas. Ninguém a percebe porque ninguém quer ver o que há embaixo dos nossos narizes.

    Quando ela se revelar em todo o seu esplendor, daí afirmaremos que preferimos fazer o errado a gritar que não, eles não podem —ou pior: fazer acreditar que é bom você já ir se acostumando (com o quê e com quem, ninguém sabe). Mas aí será tarde demais —e não teremos nenhuma vã filosofia para nos ensinar a sair da enrascada que criamos.

    MARTIM VASQUES DA CUNHA, 39, é pós-graduando pela FGV-SP - EAESP e autor do livro "A Poeira da Glória" (Record).

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