• Opinião

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    MONIQUE GARDENBERG

    Silvio Santos vem aí...

    24/12/2017 02h00

    Gabriela Di Bella/Folhapress
    SAO PAULO, SP, BRASIL, 30-01-2016, 13h00: Terreno ao lado do Teatro Oficina onde devem ser construídos ediícios após longa luta entre o teatro e os donos do terreno, Iphan deve liberar a construção em breve. A obra irá tapar as janelas do Teatro que é projeto da aqruiteta Lina Bo Bardi. (Foto: Gabriela Di Bella/Folhapress, ILUSTRADA) ***exclusivo***
    Vista do interior do teatro Oficina, no centro de São Paulo

    Eu morava em Santos quando assisti pela primeira vez ao programa do Silvio na TV, ainda em preto e branco: "Silvio Santos vem aí, parã, parã, parã"¦" Era pequenina, mas lembro da montanha impressionante de cartas de onde Silvio retirava o premiado.

    Comprei o Carnê do Baú quando juntei o primeiro dinheirinho e acompanhava aflita o sorteio, sentimento que só aumentava quando o Silvio titubeava ao tentar ler o nome do ganhador, possivelmente de escrita precária e de condições de vida igual. Como eles, sonhava ser rica.

    Aos 25, tinha acabado de criar o Free Jazz Festival com minha irmã Sylvinha, quando Zé Celso Martinez Corrêa nos procurou para produzir "Bacantes". Foi um arrebatamento, mas àquela altura nossa luta era pela sobrevivência familiar, e qualquer desvio era motivo de trauma.

    Dez anos depois, dirigia o show de Marina Lima, quando veio a notícia do trágico acidente de Ayrton Senna. Naquela noite, um público profundamente comovido atirava ao palco bonés, camisetas, peças que ele usava.

    Marina ia vestindo aquilo tudo e aos poucos um Senna cantava "O Chamado". Horas mais tarde, com o peito apertado, leio que Zé Celso estava internado com problema grave de saúde, sem recursos para os gastos médicos.

    Era um chamado, pensei. Localizei seu cúmplice artístico, Marcelo Drummond, que me tranquilizou: um empresário paulista havia coberto as despesas. E foi logo ao ponto: "Traz o Zé de volta ao palco, isso é que vai salvá-lo".

    Enviei uma carta emocionada para meio mundo, não faltou apoio, e Hamlet aportou no parque Lage, no Rio, em palco em forma de cruz pensado por Helio Eichbauer, construído por Abel Gomes e luz de José Luiz Joels.

    Uma multidão se aglomerava para ver o "Ham-let" do Zé, jovens ávidos por um teatro vivo, potente. Um mês de sucesso retumbante e uma amizade para a vida.

    Um ano antes, "Ham-let" abrira o prédio reformado do Teatro Oficina, projeto da arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992), tombado em 2010. Quando amigos estrangeiros visitam o Brasil, pedem para conhecer o Sítio Burle Marx, o Sesc Pompeia, as construções de Niemeyer, a Casa de Vidro e o Teatro Oficina de Bo Bardi. Emparedar o Oficina com três torres de cem metros parece um ato, no mínimo, desatento.

    Essa notícia, se confirmada, chocará mais uma vez o mundo e deixará São Paulo com cara de tacho. Como publicou o "Guardian" com destaque este mês, o Oficina foi considerado um dos teatros mais importantes do mundo, e a visão desobstruída deve ser entendida por nós como ponto central da arquitetura de Bo Bardi.

    Não podemos ficar para trás, precisamos escrever nossa história com poesia e respeito à cultura. Do contrário, o Brasil perderá sua graça, identidade, e no lugar do fascínio que sempre exerceu, poderá provocar dó. Não deixe essa barbaridade acontecer, Silvio. Ajude a preservar o entorno do Teatro Oficina e a cultura que daquele bairro emana.

    Hoje assisto a seu programa quando visito minha mãe. Enlouqueci quando vi a pequena Maisa, cheguei a pensar num roteiro para o cinema, mas logo ela cresceu.

    Hoje penso num filme sobre a vida de Lázaro Ramos, você não imagina a beleza do livro que ele escreveu, Silvio, "Na Minha Pele". Lembrou-me relatos de judeus da Segunda Guerra.

    Não à toa, transplantei falas do judeu Shylock para a cena explosiva contra o racismo em "Ó Paí, Ó". Imagino que sua família tenha sofrido muito também, leia, você vai se comover. Ao voltar do abraço ao Teatro Oficina, li que você havia lançado uma biografia. Vou ler também.

    Que "Silvio Santos vem aí"¦ " traga ao nosso imaginário a figura animada que povoa lares brasileiros há décadas. Seria terrível ela se transformar na imagem de escavadeiras e britadeiras ocupando o entorno da obra de Lina Bo Bardi, para enclausurar o Teatro Oficina, um patrimônio cultural do Brasil.

    Dê um presente a São Paulo, Silvio: o parque do Bexiga. Deixe esse legado e seja lembrado como uma figura que soube receber e dar, que soube falar e ouvir, sorrir e chorar.

    MONIQUE GARDENBERG é cineasta e produtora cultural; dirigiu, entre outros filmes, "Ó, Paí, Ó"

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