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    Historiadores comentam suas escolhas sobre as músicas dos anos da ditadura

    RODOLFO LUCENA
    DE SÃO PAULO

    28/03/2014 13h05

    Os historiadores Maria Aparecida de Aquino e Marco Antonio Villa fizeram comentários sobre as músicas que escolheram como mais representativas do período da ditadura militar (1964-1985) no Brasil.

    Confira abaixo o que disseram de cada canção:

    Eduardo Knapp-13.out.200/Folhapress
    A historiadora e professora da USP, Maria Aparecida Aquino
    A historiadora e professora da USP, Maria Aparecida Aquino

    LISTA FEITA COM O CORAÇÃO
    MARIA APARECIDA DE AQUINO

    "Apesar de Você"
    É a minha primeira porque já contém o tom de fim do regime e aponta para o fato de que, historicamente, em algum momento, os poderosos da ocasião seriam julgados por seus atos. Não entendo e acredito que o Chico também não, que este julgamento (que, aliás, já está acontecendo com as Comissões da Verdade) seja algo para "pagar na mesma moeda" as barbaridades que eles cometeram. Apenas um "acerto de contas" necessário para a História e para a construção de um país que chegue mais próximo da verdade desse período e, se livre do autoritarismo.

    "Tô Voltando"
    Está nas minhas maiores preferências pelo otimismo, com os bons tempos que se anunciavam. O banido, o exilado, ia, finalmente voltar e mandava um recado amoroso para sua companheira. Não há nada melhor do que isto. Acrescenta todas as coisas de que gosta: a cerveja gelada, o bronzeado ("vai pegando uma cor"), o cabelo ("faz um cabelo bonito para eu notar", mas para logo despentear). A ideia de que ao chegar vai logo se unir a ela (fala das dependências da casa e diz que numa delas "é lá mesmo que a mala eu vou largar"). A crença de que o passado tenebroso que percorremos, finalmente, "passou" e temos à vista um bom futuro para construir.

    "Roda Viva"
    Ainda da fase anterior ao pior momento do regime militar (1968-1974), é dos festivais (de 1967). Mas contém, naquele momento brilhante para a Música Popular Brasileira, um incentivo para a luta e, ao mesmo tempo, a crença nas dificuldades do enfrentamento: "A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis que chega a Roda Viva e carrega o destino pra lá". Um muito jovem compositor (Chico estava com 23 anos, ele é de 1944) tem uma compreensão aguda da realidade que o cerca e constrói uma das mais belas músicas do nosso cancioneiro popular de qualquer tempo.

    "O Que Será"
    O que encanta é a constante angústia presa em cada verso: "O que será que me dá..." que nada pode "aliviar". Interpreto como a angústia do período que vivenciávamos para o qual, naquele momento, não se via saída. Outras músicas, posteriores já vislumbram o futuro e a saída, mas esta ainda não. É profundamente datada, marca o momento histórico em que foi produzida.

    "Cantador" (Sidney Muller)
    Também uma das vencedoras do glorioso Festival de 1967, não se dirige, diretamente ao regime militar. Mas, de modo indireto canta as suas amarguras. "Ah! Sou cantador, canto a vida e a morte, canto o amor", "Ah! Sou cantador, de uma vida perdida sem amor". Sidney Muller morreu muito jovem, era um compositor absolutamente brilhante. Essa composição foi, magistralmente, interpretada por Elis Regina. E a consciência que ela traduzia do papel do "cantador", ao mesmo tempo, com (vida e amor) e sem (morte, vida perdida) esperança adapta-se maravilhosamente ao momento em que estávamos.

    "Domingo no Parque"
    Segunda colocada no Festival de 1967, é uma das mais poderosas músicas da MPB. Sua modernidade é absoluta (e não é só pelo uso dos instrumentos musicais). Musicalmente falando, tanto na letra, como na música, está adiante (e muito) do seu tempo. A briga de "João" e "José", os dois amigos ("um trabalhava na feira", "outro na construção") por "Juliana" termina em tragédia como era de se esperar. A beleza da composição é, entretanto, o avesso da tragédia. "Juliana girando" e a roda girando. "Olha a faca!", "Olha o sangue na mão", "Outro corpo caído, seu amigo João". Aí vem a dor da consciência da tragédia anunciada: "Amanhã, não tem feira, não tem mais construção, não tem mais brincadeira, não tem mais confusão." Mas, Gil termina cantando, algo diferente: "Eh!, eh!, eh!, eh! eh!, eh!, eh!, eh!, eh!", com a música conduzida por sua guitarra de modo muito alegre e até insolente. Momento eterno e privilegiado da MPB.

    "Procissão"
    Composição um pouco anterior em relação a essas do final da segunda metade da década de 1960, narra a cultura e as agruras do povo brasileiro. Um povo lutador e crente. Essa religiosidade é uma das grandes características de nosso povo, independentemente, de nossas crenças e das crenças pessoais dos compositores. Gil consegue captar essa face cultural da população brasileira. É um libelo e um ensinamento: "Olha, lá vai passando a procissão, se arrastando como cobra pelo chão. As pessoas que nela vão passando, acreditam nas coisas lá do céu", "As mulheres passando tiram o véu, os homens escutando tiram o chapéu". Pense em nossas romarias e aqui você vê a "tradução mais perfeita".

    "Romaria" (Renato Teixeira)
    Na mesma linha de "Procissão", mas um poema absoluto do que é triste, singelo e de rara beleza no povo brasileiro. "O meu pai foi peão, minha mãe solidão, meus irmãos perderam-se na vida em busca de aventura", "(...) investi, desisti, se há sorte, eu não sei nunca vi", "Sou caipira (...) Nossa Senhora de Aparecida...". E possui talvez o mais singelo verso da MPB: "Como eu não sei rezar, só queria mostrar, meu olhar, meu olhar, meu olhar".

    "Alegria, Alegria"
    A música que lança Caetano Veloso para o grande público. Ainda era conhecido como o "irmão de Maria Betânia" que havia aparecido no Sudeste com o show "Opinião", outro pródigo em grandes e belas canções. Da mesma maneira que "Domingo no Parque" é de rara modernidade. Traduz o momento e o aparente "descompromisso" da juventude brasileira que é o mesmo da juventude mundial que se manifesta no mundo e no Brasil em 1968. "Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento" (o "descompromisso"). "Eu tomo uma Coca-Cola, ela pensa em casamento, uma canção me consola, eu vou. Por que não?" (o diálogo com o público e com o tempo vivido. As diferenças entre as aspirações do homem e da mulher e, também, a expressão do seu desejo). Lembra Machado de Assis em "Memórias Póstumas de Brás Cubas" que, no final do século XIX dialogava (essa modernidade não existe em outra língua e não foi ultrapassada) com o leitor: "se não gostar, dou-lhe um piparote e adeus".

    "Caminhando"
    Menos pela qualidade (letra e música) e mais pelo símbolo. É o grande hino das manifestações sociais no Brasil depois dos anos de 1960. Pessoas que não conhecem o contexto em que ela foi composta e as consequências que acabou trazendo para o seu compositor cantam, sem sequer saber o que representou e representa. É um muito simples convite à luta. Pela simplicidade e pelo convite talvez tenha permanecido mais na memória das pessoas. Seu valor é inconteste. "Vem, vamos embora que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora não espera acontecer!" Contém também uma compreensão do militar de patente baixa e que, necessariamente, não compreende o momento que partilha: "Há soldados armados, amados ou não. Quase todos perdidos, de armas na mão. Nos quartéis lhes ensinam antiga lição. De morrer pela Pátria e viver sem razão." Essa é a verdadeira força "subversiva" dessa canção que deve figurar em todos os manuais da MPB.

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    Marco Rogério/Jornal 1ª Página
    Historiador Marco Antonio Villa
    Historiador Marco Antonio Villa

    FUGINDO DO LUGAR COMUM
    MARCO ANTONIO VILLA

    "Opinião", de Zé Ketty. Inaugura a música de protesto ao regime (e ao governador Carlos Lacerda, da Guanabara). E ainda em 1964.

    "Sinal Fechado"
    Obra-prima de Paulinho da Viola. Coloca os dilemas da vida urbana, a correria, a pressa, o estresse, as relações partidas. É o Brasil moderno, industrial e urbano, que deixou para trás o mundo rural.

    "Apesar de Você"
    A resposta musical de Chico Buarque ao principal redator do AI-5, o ministro da "Justiça" Gama e Silva.

    "Eu Te Amo, Meu Brasil"
    É a música símbolo do ufanismo do regime, primária na letra, na música e na interpretação de "Os Incríveis". Acabou demonizada. "País Tropical" de Jorge Ben (não época não era "Ben Jor"), é tão ufanista como ela, mas é mais elaborada e teve a célebre interpretação de Wilson Simonal.

    "Pare de Tomar a Pílula"
    Odair José apresenta as contradições de um relacionamento amoroso em um país que, apesar da repressão política, estava realizando uma profunda transformação comportamental. E a música de Odair não era dirigida à classe média, mas ao "povão" dos subúrbios e periferias.

    "Tributo a Martim Luther King"
    Foi uma das primeiras músicas (e de sucesso) que colocou o dedo na ferida do preconceito racial no Brasil. A interpretação de Wilson Simonal é belíssima (a música é dele e de Ronaldo Bôscoli).

    "As Curvas da Estrada de Santos" (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
    O carro como símbolo sexual e produto da modernização econômica do regime e do "milagre econômico." A enorme expansão da indústria automobilística transformou o carro no objeto de consumo mais desejado e indispensável até para namorar. Em entrevista, Lula recordou duas alegrias quase que simultâneas: o início do namoro com dona Marisa e a compra de um TL ("Entrei no carro, ele pegou na hora. Banco reclinado. Me senti um rei. Depois eu só progredi na vida." )

    "Cálice", de Chico Buarque e Gilberto Gil
    Tortura e censura como sinônimos do auge do regime repressivo durante a vigência do AI-5.

    "Casa no Campo" (Zé Rodrix)
    Não está nem aí para a grande política. Sai da esfera do coletivo para a do indivíduo. Apresenta idilicamente o mundo rural como contraponto à vida nas metrópoles, símbolos do progresso do regime. Faz parte da revolução comportamental do período, do movimento hippie e com pitadas de contracultura.

    "Que País É Esse?"
    É um dos clássicos da Legião Urbana. Retrata bem a crise final do regime militar usando a pergunta do indefectível Francelino Pereira, presidente da Arena.

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